O erro duma letra no endereço electrónico sepultou a mensagem deste leitor nas entranhas do google, durante um ano. É o que acontece a quem se fia nisto. E só agora me chega a sua crítica a um trabalho editado há mais dum ano, o Portugalmente. Tratando-se de opinião generosa e lisonjeira a vários níveis, aqui deixo passar notícia dela.
«Eu leio pouco e devagar. Nada que tenha a ver com o
valor intrínseco do que me proponho ler (...). É que
não é só o que a gente lê. É tudo o que a toda a hora nos entra pelos olhos,
pelos ouvidos e outros sentidos, sem termos possibilidade de nos protegermos com
palas, tampões e outros bloqueadores deste assédio que mais parece obra do
diabo só para nos atormentar.
E em parte assim fica explicado o tempo, que há-de
parecer exagerado que demorei a ler este livro. E digo em parte, porque a
outra, que penso ser a maior, terá mais que ver com o prazer que me guiava e
alimentava, quando me sentava para atacar mais um capítulo, ou a parte que ficou
dele e que eu deixara para a vez seguinte, como quem tendo à sua frente uma
iguaria, tem o bom senso de não a devorar de uma só vez. E isto não deve ser
entendido, de modo algum, como piada dirigida ao meu amigo Afonso
Gonçalves que o leu de um só fôlego, segundo diz, em escassas oito horas. (...)
E, dito isto, vamos ao que mais interessará, e que
daqui para a frente não será propriamente um discurso corrido, antes um alinhar
de notas que ao longo da leitura fui recolhendo, uma ninharia se comparada com
as anotações que esta obra mereceria. (...)
Interessante, para começar – mera coincidência, talvez
– parece-me o facto de o formato da obra ser muito semelhante ao de “Arcas
Encoiradas” do Mestre Aquilino, com enunciados detalhados, tipo sumário, no
início de cada capítulo. E ainda sobre esta questão, a do formato, lembro-me
que quando pela primeira vez peguei neste livro, a reacção primeira que tive foi
a de associá-lo a brochuras que andam por aí nas arrecadações das Câmaras
Municipais e que vão distribuindo junto com outras coisinhas metidas em
saquinhos a todos os visitantes um pouco mais ilustres. (...) O que eu fico a desejar é que o mesmo não aconteça com este livro, que
isso sim, seria um pecado sem remissão.
Daqui para a frente, que palavras escolher? Delicioso?
Talvez esta seja a palavra mais adequada, a par doutras que nos vão ocorrendo à
medida que vamos lendo. Como, por exemplo, a atmosfera de profunda
religiosidade que perpassa a obra quase do princípio ao fim, como em Saramago,
coisa mais visceral que mental, sem necessidade das moletas da fé, isto no meio
de outras frequentes aproximações à escrita do autor do “Memorial do Convento”,
que bem pode ser pura coincidência, mas normalmente não é.
Mesmo que disfarçada ou propositadamente iludida, por
vezes até em jeito de brincadeira, bem se vê que por detrás da narrativa que
nunca por nunca se torna cansativa há muito trabalho de investigação ou então
muita sabedoria e um manancial de informação.
Mas, apesar de todos os cuidados, que sei que foram
muitos e demorados, são frequentes os desencontros entre o correr da narrativa
e as ilustrações fotográficas, o que, não sendo assim tão grave, não deixa de
ser uma pena, por atrapalhar, inevitavelmente, o labor de quem está a ler.
Veja-se, só a título de exemplo, o caso da “pedra cavaleira”, no texto a pags.
41 e a respectiva imagem já bem lá para trás (pag. 36). Cá por mim até sou de
opinião de que o texto desta obra bem que poderia dispensar qualquer
ilustração. É só uma opinião.
Porque, a meu ver, não é um livro para olhar e ainda
menos para devorar, antes para degustar, como quem come um bom naco de queijo
da serra e bebe um copo de bom vinho. Até porque de intriga ou de suspense não tem mesmo nada. É, portanto, mais para ir
comendo e mastigando com calma. (...)
Muito interessantes, também, os frequentes tropeções
com a actualidade e os mergulhos na nossa História que até parecem ficção,
desde a fundação da nacionalidade até ao 25 de Abril, e depois dele, passando
por testemunhos de sobreviventes da Guerra Colonial. Em certo sentido até
parece que está aqui tudo, porque o que daqui resulta é uma espécie de padrão
que se replica, nos seus traços fundamentais, em muitas partes do país. Está cá
tudo? Claro que não. Nem poderia estar. (...)
Também o pormenor finamente detalhado de tantos sítios
e lugares poderá levar alguns leitores a desistir no meio da jornada, talvez a
passar à frente, perdendo com isso o essencial que, quanto a mim, está na arte,
na qualidade literária e grande sensibilidade do autor. Os naturais destas
paragens, esses sim, têm aqui tudo, uma história por vezes bem rica em
pormenores do seu torrão natal; e se acompanharem essa circunstância
privilegiada com uma boa aptidão para gostar do que é bom, então o que aqui se lhes oferece é um verdadeiro
“rio de mel”. (...)
Por isso também me atrevo a dizer que todo o português
com dez reis de discernimento, incluindo os alunos das nossas escolas, deveria
ler esta obra. (...)
E à medida que a minha leitura se ia aproximando do
fim, começava a compreender melhor o entusiasmo do Afonso Gonçalves pelos três últimos capítulos, e muito especialmente
pelo que diz respeito às famosas ou famigeradas Gravuras Rupestres de Foz-Côa,
ele mais dado a coisas práticas, às ciências exactas e às matemáticas, as
outras formas de conhecimento pouco sendo mais que balelas, com gosto por
coisas bonitas como a literatura, uma fonte de entretenimento inteligente. Nada
de sonhos ou utopias.
Cá por mim, ao terminar a leitura desta obra, para
exprimir o que sinto, só encontro uma maneira extremamente simplificada: há
quem tente, e há quem saiba mesmo escrever, que é o caso do meu amigo Jorge
Carvalheira. E em casos como o dele, o tempo do reconhecimento, se ainda não
for desta, há-de um dia chegar.
Viseu, 25Fev2013»