A literatura e a linguagem comum servem-se do mesmo conjunto de vocábulos e regras que constituem a língua. Com ele comunicam os falantes no seu quotidiano, com ele se fazem as notícias do jornal, e os livros de auto-ajuda, e os ensaios sociológicos, e os relatos de futebol. E com ele se constrói a arte literária.
Esta constatação implica que há forçosamente uma diferença no modo como cada uma destas situações utiliza os recursos da língua. Em usos comuns, o discurso enunciado é particular e denotativo, tem um único sentido, directo e literal. O que o texto quer dizer é apenas o que nele está, e deve ser expresso do modo mais transparente e menos ambíguo possível, para que a comunicação se estabeleça.
Já o discurso literário tem um significado universal e mais amplo. É polissémico e conotativo, deixando abertos múltiplos campos de significação e sugestão.
Deixando de lado o problema da organização da matéria narrativa (aquilo que se pretende contar), há entre a literatura e a composição musical um campo comum, já que as palavras e a música são ambas jogos de sons. E nenhuma delas é para fruir em silêncio. Por mais que isso arranhe os ouvidos dos correntes empilhadores de palavras, um texto literário sem harmonia, sem ritmo e sem musicalidade é um exercício truncado e sem vida. Reside aqui a principal desgraça de qualquer tradução, pois a música do original é a primeira vítima dela.
Desconfia, leitor empedernido, dum texto literário que se esgota no que lá está, e não te diz mais do que aquilo que afirma. No final sabe-te a pouco, já que estão a servir-te gato em vez de lebre. E se a tua língua se vir obrigada a dar saltos mortais na boca para lhe dar voz, o conto do vigário é ainda pior. Se não te dás conta disso, é que ainda leste pouco!