Encontrei-o no cimento da garagem, enrolado no veludo das patitas estendidas no chão. Ali mesmo no caminho dos carros e das correntes de ar, onde alguém por força havia de passar. Julguei-o um bicho doméstico vitimado pela crise... pela morte duma dona já velhota... De modo que ele arriscou uma janela distraída e pôs-se ali à espera, descaradamente, à espera de algum madrugador. Rouquejava uma gosma que me pareceu fatal.
Aconcheguei-o a um canto e fui-me aconselhar com quem sabe de felinos. O bicho estava a morrer, melhor seria levá-lo ao consultório e ajudar-lhe o passamento. Mas lá voltei a encontrá-lo no meio do cimento.
A jovem veterinária desenhou-lhe o perfil de macho dominante. A bochecha façuda, a cicatriz na cara, dois cortes na orelha... eram medalhas de guerra dum campeão da rua. Diagnosticou-lhe a coriza das vias superiores, injectou-lhe na coxa um elixir e guardou-o numa jaula. Não era caso de morte, avisou maternal, nem pouco mais ou menos. Pediu-me uma semana. E o preparo ficou-me numa fortuna.
Quando ela telefonou eu fui saber novidades, que a decisão era minha. Sofria de sida, o bicho, tinha a leucemia dos felinos, engordara como um marajá e retomara os tiques do gato doméstico apaparicado, que outra vez voltara a ser. Rebolava-se no chão, ofertava a barriga em convites dengosos, uma beleza e uma rebaldaria. Caso voltasse para a rua não sobrevivia um mês, mas um dono aberto e complacente podia garantir-lhe anos de vida. A única questão era arranjar-lhe um lar.
A decisão era minha e não tardei a tomá-la. Com pena de não ter nascido um dia engenheiro naval por Glasgow, tipo vagamente de judeu português, com um coração de vidro pintado*, que se deita fora quando se põe a estalar.
*Álvaro de Campos