sábado, 23 de março de 2013

HAJA LUZ! - 32

«(...) Em 1885, o embriologista alemão Oscar Hertwig, que descobrira que a fertilização celular correspondia à união dos núcleos das células sexuais masculina e feminina, sugeriu que "a nucleína era a substância responsável não só pela fertilização, como também pela transmissão das características hereditárias". Outros - e Mischer era um deles - achavam que não; a molécula era demasiado pequena para conter tanta informação. Mal sabiam eles! (...)
Leitores: é tempo de adoptar a sugestão (1889) do histologista alemão Richard Altman - um discípulo de Miescher - e passar a chamar à nucleína ácido nucleico. Trata-se afinal de um ácido orgânico complexo, rico em fósforo. (...)
Miescher conduzia a investigação com uma fé quase religiosa. Conta-se que, no dia do casamento, tiveram que o ir buscar à universidade; esquecera-se das horas, e a noiva estava já na igreja à espera... As condições em que trabalhava eram modestíssimas, o laboratório não passava dum acanhado corredor deficientemente equipado; quando faltava material de vidro, substituía-o por peças do seu serviço de porcelana de Sèvres (para desespero da mulher). Nesses tempos a ciência ainda era vista como uma missão de sacrifício, e não como uma fábrica de ganhar dinheiro. Miescher morreu tuberculoso em 1895, com 51 anos de idade. Deve-se-lhe uma descoberta importante - a do ADN. Que a sua molécula era complexa, prova-o o facto de a sua estrutura só ter ficado estabelecida nos anos 1950. No entanto, quando a história da grande descoberta veio a ser escrita numa espécie de autobiografia romanceada, o nome de Friedrich Miescher não constava do índice nem era referido no texto. (...)»

[Estruturas helicoidais do ADN e do ARN]
(Os actores da descoberta do ADN foram múltiplos, com variadas contribuições: Albrecht Kossel, médico e fisiologista; o russo Phoebus Levene, emigrado na América em 1893 por causa das perseguições anti-semitas; Erwin Chargaff, bioquímico austríaco judeu emigrado na América em 1935 para escapar ao nazismo; Oswald Avery, médico e investigador americano; Lawrence Bragg, director do Laboratório Cavendish em Cambridge; Linus Pauling, professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia; Dorothy Hodgkin, de Oxford; John Randall, bioquímico do King's College; Maurice Wilkins, físico do King's College; James Watson, zoólogo da Universidade de Indiana; John Kendrew e Max Perutz, do laboratório Cavendish; Francis Crick, físico do Cavendish; Rosalind Franklin, químico-física e cristalógrafa; Alexander Todd, químico na universidade de Cambridge. Muitos deles foram contemporâneos e parceiros nas pesquisas, no pós-guerra. E as relações mútuas nem sempre foram edificantes.)

«(...) A arquitectura do ADN assemelhava-se a uma escada de corda torcida (uma escada em caracol - a imagem favorita de Pasteur!), com as prumadas constituídas por cadeias de fosfato e desoxirribose (em alternância), e as traves, ou degraus, formados pelos planos das bases orgânicas nitrogenadas. (...) Alto e bom som, Crick anunciou que tinham descoberto "o segredo da vida". (...) Franklin, em especial, não mostrou o menor ressentimento. Um verdadeiro cientista exulta com as soluções de problemas difíceis, mesmo obtidas por outrem. Mal sabia ela que a bonita arquitectura da hélice dupla tinha sido riscada nas suas costas, usando os seus resultados!
Franklin já tinha um artigo praticamente pronto com o seu trabalho sobre a estrutura do ADN. Wilkins resolveu fazer o mesmo e, por acordo de cavalheiros entre Bragg e Randall, os três artigos saíram no mesmo número da Nature, a 25 de Abril de 1953. (...)
O modelo da hélice dupla é, no fundo, o de um par de escantilhões ou gabaritos, aptos para executar a duplicação. Quebrando-se as ligações de hidrogénio, as duas cadeias desenrolam-se e separam-se (tal como acontece com a abertura dum fecho éclair, ou zip), ficando cada uma pronta a ligar-se à sua cadeia complementar. Eis o "segredo da vida".(...)»
[Caduceu e logótipo do editor Johann Froben - ca. 1523]
 «O que é curioso é que o caduceu, o conhecido símbolo da medicina e da farmácia, parece antecipar a hélice dupla. A sua origem perde-se no tempo. Constituído por duas serpentes enroladas (antiparalelamente) num bastão coroado por um par de asas, o caduceu andou associado a Hermes ou Mercúrio, o deus mensageiro. Que mensagem? O conhecimento, em geral, quiçá o código da hereditariedade... As conotações químicas são também óbvias - de Hermes Trimegisto ao mercúrio metálico propriamente dito usado pelos alquimistas, passando pelo ouroboros. A associação à medicina deriva provavelmente duma confusão com o bastão (com uma única serpente) de Esculápio, o deus da medicina; generalizou-se no final do séc. XV, quando editores de livros médicos, com Johann Froben, um amigo de Erasmo, começaram a usar o caduceu como ex-libris ou logótipo da casa da imprimissão. (...)
[Monumento à III Internacional - Vladimir Tatlin, 1919]
«(...) A beleza do ADN é a beleza dum arranha-céus que se ergue e prolonga a alturas inimagináveis. Evoca a beleza utópica da torre helicoidal - duas hélices paralelas - imaginada em 1919 por Vladimir Tatlin para homenagear (e alojar) a Terceira Internacional: um engenhosa estrutura transparente de ferro, aço e vidro de quatrocentos metros de altura, que deixaria a Torre Eiffel a perder de vista. Infelizmente nunca foi construída. 
Quem me acompanhou ao longo destas centenas de páginas percebeu a beleza visível do carbono, quer na forma de diamante ou de fullereno (a bola de futebol à escala atómica), quer na perfeição hexagonal da grafite (reencontrada no benzeno). Percebeu que o fascínio do carbono assimétrico é uma fonte de prazer que conduz à doçura dos sacáridos. Percebeu que o equilíbrio estrutural do ADN helicoidal é a beleza da vida. A química é a forma mais íntima de arquitectura.»