sábado, 30 de dezembro de 2017

Palavras mais, para quê?!

"Um padre missionário transportado por um batel perdido e a quem o escorbuto e a malária emagreceram como um abissínio sem poiso casara-os 53 anos antes , já na Guiné que se limitava então a um amontoado de casas no estuário do rio, muitas delas de madeira e de capim, com meninos e jacarés brincando com as mesmas rocas nos mesmos berços de bordão, em torno do palácio do governo e de uma ermida sem majestade.
As jiboias engordavam na humidade dos lagos, e a senhora de luto que lhes alugara o quarto levava o dia com um pé calçado e outro descalço, de botina de verniz no ar, achatando melgas nas paredes. Aos domingos, quando os corpos se procuravam e tocavam nos lençóis musgosos de calor, o caminhar desigual da dama no andar de baixo, entre centenas de pêndulos desencontrados, e os estalos vingativos da sola nos muros de tijolo, acabavam por lhes desanimar a vontade e os fazer sair para a rua, cegos de luz, a sentarem-se nos bancos duma praceta de mangueiras anãs, cujos troncos definhavam na névoa do cacimbo. Ou vinham até ao cais, empurrados pela curiosidade tatuada dos indígenas, assistir ao atracar sempre idêntico dos navios de emigrantes, gente escura de Trás-os-Montes ou da Beira. (...)
O piso inferior foi primeiro ocupado por um vedor da fazenda que negociava à socapa das polícias do reyno em irmãos siameses e miudezas de estanho, a seguir por um poeta de cabeleira empoada e sapatos de presilha e tacão alto que se gabava de ter sido amigo do glorioso defunto Manoel Maria Barbosa du Bocage, eu que vi nascer dos botequins do Rossio os mais belos improvisos do meu tempo, e depois, já na época da guerra, por oficiais roídos de febre intestinal que de dois em dois anos mudavam de cara e de galões e regressavam da mata com um fungo de pelos nas bochechas, porque todos emagrecíamos na Guiné nessa época. A violência das explosões dos morteiros, das bazucas e dos canhões sem recuo estremecia as lagunas de Bissau, sobrepondo-se aos relâmpagos de Março.(...)
Uma noite escutaram por acaso na telefonia, num vendaval de assobios, a revolução de Lixboa, notícias, comunicados, marchas militares, a prisão do governo, canções desconhecidas, e no dia imediato a tropa parecia menos crispada, os bombardeamentos rarearam, pretos de óculos flamejantes e camisas de feriado instalaram-se nas esplanadas e nos largos no lugar dos brancos. "
(O Lobo Antunes devia ser poeta)