sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Memorial

"(...) Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra língua e voltava para trás. (...) Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. Vinha do Sul,dos lados de Pegões. Atravessou o rio, quase noite, na última barca que aproveitava a maré. Não comia há quase 24 horas. Trazia algum alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava, e uma voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado. (...)
Meteu-se pela Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na Rua de Nossa Senhora da Oliveira, em direcção ao Rossio, repetia um itinerário de há 28 anos. (...) Havia multidão em São Domingos, archotes, fumo negro, fogueiras. Abriu caminho, chegou-se às filas da frente, Quem são, perguntou a uma mulher que levava uma criança ao colo, De três sei eu, aquele além e aquela são pai e filha que vieram por culpas de judaísmo, e o outro, o da ponta, é um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva, dos mais não ouvi falar.
São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem.
Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda."