quinta-feira, 1 de junho de 2017

Crónica de uma morte anunciada

 
Sempre foi a minha novela preferida do García Márquez. Num tempo diegético de 24 horas, o autor tem artes de meter lá dentro uma filosofia, um modo de ver o mundo e os valores duma vida.

"No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5.30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava uma mata de figueiras bravas, onde caía uma chuva miúda e branda, e por instantes foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se todo borrado de caca de pássaros.
"Sonhava sempre com árvores", disse-me a mãe, Plácida Linero, recordando 27 anos depois os pormenores daquela segunda-feira ingrata. "Na semana anterior tinha sonhado que ia sozinho num avião de papel de estanho que voava sem tropeçar por entre as amendoeiras", disse-me. Tinha uma reputação bastante bem ganha de intérprete certeira dos sonhos alheios, desde que lhos contassem em jejum, mas não descobrira qualquer augúrio aziago nesses dois sonhos do filho, nem nos restantes sonhos com árvores que ele lhe contara nas manhãs que precederam a sua morte.
Santiago Nasar também não reconheceu o presságio. Dormira pouco e mal, sem despir a roupa, e acordou com dores de cabeça e com um sedimento de estribo de cobre na boca, e interpretou-os como estragos naturais da farra de casamento, que se tinha prolongado até depois da meia-noite. E mais ainda: as muitas pessoas com quem se encontrou desde que saiu de casa às 6.05 até ser despedaçado como um porco uma hora depois, recordavam-no um bocado sonolento mas de bom humor, e a todas comentou de modo fortuito que fazia um dia lindo. (...)
Angela Vicario, a bela rapariga que se tinha casado no dia enterior, fora devolvida a casa dos pais porque o marido tinha descoberto que ela não era virgem. (...)
Eram gémeos: Pedro e Pablo Vicario. Tinham vinte e quatro anos, e pareciam-se tanto que custava trabalho distinguir um do outro. (...) Embora não tivessem parado de beber desde a véspera da festa, já não estavam bêbados ao fim de três dias, parecendo antes sonâmbulos tirados do sono. Tinham adormecido com as primeiras auras do amanhecer, depois de quase três horas de espera no estabelecimento de Clotilde Armenta, e aquele era o seu primeiro sono desde sexta-feira. (...) Então agarraram ambos no rolo de jornais, e Pedro Vicario começou a levantar-se.
- Pelo amor de Deus - murmurou Clotilde Armenta.  - Deixem isso para depois, mesmo que seja só por respeito ao senhor bispo." (...)
Pedro Vicario, o mais resoluto dos irmãos, suspendeu-a pela cintura e sentou-a à mesa da sala de jantar.
- Vá, menina - disse-lhe tremendo de raiva -: diz-nos lá quem foi.
Ela demorou tão só o tempo necessário para dizer o nome. Procurou-o nas trevas, encontrou-o à primeira vista entre tantos e tantos nomes confundíveis deste mundo, e deixou-o espetado na parede com o seu dardo certeiro, como a uma borboleta sem vontade própria cuja sentença estava escrita desde sempre.
- Santiago Nasar - disse. (...)".
[Edições O Jornal, Lisboa, 1983]