sexta-feira, 20 de março de 2015

Desatenções

1 - Era assistente novata e não saberia muito. Mas ajudou-me a abrir as portas do Gil Vicente e quejandos, num tempo em que eu sabia muito menos do que ela.
Um mestre que era eminente, narcisista e patrono de saberes, trazia-a pela arreata. Até que um dia a deixou ao deus-dará, e ela ficou sem centro de gravidade.
Sem saber que mais fazer, o médico lançou mão da equoterapia. E a T. lá ia, duas vezes por semana, ao picadeiro de Vila Franca de Xira. Mas não a levaram longe as cavalgadas.
A última vez que a vi foi numa festa de anos: cana frágil que os ventos açoitavam, incapaz de alinhar uma frase, os afectos em desordem... 
Um dia engoliu o frasco dos comprimidos e desapareceu.
2 - A S. tinha idade para ser minha filha. Às tantas ficou na orfandade, e encontrou em mim uma figura paternal. "Tenho consigo um relacionamento que nunca consegui ter com o meu pai. Não diga nada a ninguém!" E estudava, e trabalhava, e resistia, a aguentar-se no balanço.
Eu estava a trezentos quilómetros de distância. De horas em quando ia visitá-la, a saber dela, que às vezes ousava telefonar-me. "Não diga nada a ninguém!" 
Um dia abriu a janela do sétimo andar e atirou-se para o vazio. 
Há desatenções fatais e foram minhas.