«(...) A Grécia é hoje um caso limite de experimentação biopolítica, um país inteiro tornou-se uma forma derivada dos campos, um lugar habitado não já por um povo ou por uma sociedade histórica, mas por uma mera população supérflua. Desapossados de toda a soberania e coagidos a erradicar a política como instância de mediação entre a economia e o social, os gregos estão reduzidos a um projecto de experimentação dos princípios económicos de um biopoder que delimita e designa populações – e segmentos de populações – suspeitas, inúteis e supérfluas. Em termos técnicos, trata-se de induzir uma desvalorização interna da população grega, já que não é possível uma desvalorização da moeda, com objectivos sanitários: trata-se de curar um país, de lhe mostrar que o remédio está no mal. O eixo estratégico do biopoder reside agora no corpo múltiplo de um organismo transindividual – um país, uma nação, um povo – como alvo de tecnologias disciplinares. Todos aqueles que, por cá, dizem que “nós não somos a Grécia” ou são ignorantes ou apenas querem esconder o que estamos a caminho de ser: porque a Grécia não é um “caso” excepcional, é um paradigma e um laboratório. Nela podemos ver a antecipação e a forma extrema (isto é, aquela onde uma realidade ainda imprecisa se revela) da reconfiguração em marcha das sociedades ocidentais, onde já se começou a passar ao acto e a planificar a eliminação lenta, discreta e politicamente correcta dos supranumerários, cuja existência faz ascender ao vermelho as somas necessárias para manter os dispositivos de protecção. Velhos, reformados, doentes crónicos, deficientes, desempregados dificilmente recicláveis, imigrantes, segmentos da juventude não qualificada: todos eles representam heterogeneidades parasitárias que não podem ter lugar no quadro ideal de crescimento e produção de riqueza exigidos pelo capitalismo ultra-liberal. Impõe-se, por isso, a sua eliminação. É o que está a acontecer, aqui e agora, diante dos nossos olhos: o campo como paradigma biopolítico, com as suas práticas de eliminação subtil, está em expansão acelerada; e da sorte funesta reservada às existências que são como empecilhos começamos a ter testemunhos cada vez mais frequentes. Até os mais distraídos já perceberam que é só uma questão de tempo para chegar a sua vez. E os que não forem eliminados servirão para alimentar uma regressão organizada às claras a formas de exploração que têm muitas afinidades com as que alimentaram a expansão do capitalismo no século XIX.»
[António Guerreiro, Público / com vénia]