Que numa vilória ignota se reúna, domingo à tarde, um auditório a abarrotar de gente, para assistir à apresentação dum livro, é coisa surpreendente. Mesmo quando se trata de dois, que o autor decidiu defenestrar em simultâneo. Se a esse facto adicionarmos nós a programação letal das televisões generalistas, a pública e as privadas, que alegremente imolam consciências, composturas e critérios no altar das audiências, forçoso é estarmos diante dum milagre. Eu não sou crente, porém nestes milagres acredito.
Mas não convém embandeirarmos em arco e desperdiçar foguetes. Porque as artes em geral, e a literatura muito em particular, contam entre as suas múltiplas funções e finalidades alguma coisa de medicinas da mente, para não lhes chamar remédios do espírito dos homens. Dos leitores, e muito frequentemente dos autores.
Quando elas são sérias e eficazes, estas medicações geram equilíbrios, ganhos, sanidades novas. Se o não forem, produzem apenas os estilhaços dos efeitos secundários. Intoxicam ou entontecem, sendo aqui adequado dizermos que alienam. É mazela de que hoje se fala pouco mas existe.
E é exactamente aqui que o ponto bate. Desde o miolo artístico da obra (que são duas), às intervenções dos apresentadores (que foram meia dúzia), tudo neste evento se resumiu a um equívoco solipsista, centrado no umbigo. Ainda por cima improvisado, tosco e diletante. No fim restaram os estilhaços secundários e uma grande frustração.
As elites que aí andam conhecem há muito tempo o poder alienante destes xaropes estéticos. E porque mais lhes aprazem as massas de consumidores ruminantes do que os fruidores críticos e activos, servem-se desse poder sem resquícios de pudor. Hoje, aqui, fez-se-lhes um frete, com este ritual de missa-negra por certo não consciente.
E a cerejita no bolo é que todos os oficiantes são desgraçadamente professores. Quer dizer que a xaropada cultural se reproduz alegremente, por divisão celular. E o leitor fará melhor em aprender a nadar, perante tanta água. A ver se resiste à onda e à maré.