Lidoro
Um tal nome é
corruptela do vulgo, do original já não há quem se lembre. Tinha ressonâncias
clássicas perdidas, engendradas ninguém sabe como na cabeça do pai, a quem
chamavam filósofo. Isto quando voltou da Grande Guerra, de cabeça estonteada
pelos gases.
Hoje vive ali nas
Tapadinhas, a meio da encosta, como um anacoreta. Tem uma casita de chão
térreo, com uma porta por onde o sol espreita, sem entrar. Lá dentro cabe uma
vaca, duas cabras, e dúzia e meia de cães. Na horta há uma presa velha, de
águas-vivas. Basta-lhe a ele, aos bichos e ao renovo.
Quando calha apanha uma
perdiz, um laparoto incauto, se os cachorros ajudarem. Poda as vides da latada
em lhe chegando o tempo, e é delas que tira um palheto improvisado para adoçar
as invernias. Afora isso deixa o mundo correr.
Teve em tempos uma
namorada e desejos de fazer vida com ela. A mãe é que não deixou, no
entendimento dela não era mulher para ele. A namorada foi casar a outro lado, a
mãe morreu quando lhe chegou o dia, Lidoro ficou sozinho e mudou-se para as
Tapadinhas. Nunca mais voltou ao povo, que foi ficando deserto.
Já lhe ofereceram uma
casa da Misericórdia, um catre no lar dos velhos, mas ele escorraçou o
mensageiro. Diz que se fartou daquelas galgas, que não está para as aturar. As
galgas são as línguas das mulheres, quando se juntam na fonte. E ninguém lhe
deu notícia de que as galgas já morreram e deixaram de lá ir.
A pontada que lhe mói o
lado esquerdo já passa as noites com ele. A princípio ia e vinha, uma fraqueza
assim ao fim da tarde, talvez por mor do cansaço. Agora nem de madrugada o
larga. Prende-o à cama e só o vai largar quando acabar com ele. Mas Lidoro
ainda o não sabe.
Nessa altura, que não
tarda, os cachorros vão juntar-se à roda do seu dono, todo ausente, a mão
imóvel. Vão ganir-lhe, em voz chorada, a pressentir o pior. Vão ladrar-lhe, em
desespero, já sem esperança nenhuma. E vão uivar-lhe, raivosos deste abandono,
já toldados pelo instinto. Até que o primeiro deles lhe afoite na jugular os
caninos esfaimados.