A velhota fez cem anos há pouco, e há nela motivos de algum espanto. Passa os dias ao lado da lareira, num cadeirão articulado que os filhos lhe arranjaram. Lê sem óculos os livros de orações pias, mas não rejeita um jornal quando aparece. Come por mão própria sem fastios, e não se queixa de mazelas corporais. Dorme duma assentada quinze horas todas as noites, sem interrupções nem insónias. Não tem açúcares altos, nem tensões caprichosas, nem colesteróis gulosos, nunca toma uma simples aspirina. Reconhece todas as pessoas que a visitam e sabe o nome delas. Já não se põe de pé sem uma ajuda, mas vai para o quarto sozinha, pilotando o andarilho em que se apoia.
Pela-se por uma boa conversa, embora não oiça bem. E quando me tem à mão aproveita-se disso e eu alimento-o. Conta-me histórias da sua vida, que foi sempre tão dura quanto é longa, sobretudo de quando era novata. Eu falo-lhe de peripécias que vivi com ela, só para a espevitar. Recorda-as e reconhece-as, mas é raro chamá-las à conversa.
Às vezes dou-me a pensar que cem anos de vida é muito tempo, porém o caso dela encarrega-se de mostrar que nem sempre é verdade. Há dias em que me faz notar que só está à espera que Deus se lembre dela e a mande chamar. Ele é que não quer saber e deixa andar. E cá dentro torna-se mais aguda e consciente a precaridade da vida dos muitos velhos que apanham pneumonias em casas geladas, e acabam por morrer de solidão numa urgência de hospital,
Claro que tudo isto tem um preço. Mas no mundo sonhado por certos cães só haverá salvamento, se cada um fizer o que deve e em casos pode ser feito.