sábado, 5 de abril de 2014

Vidas 9

Conclusão

A objectividade destes relatos é atestada por alguns dados recorrentes: a existência dum segundo abalo violento, o maremoto de que foi acompanhado, o incêndio da alfândega e do Paço da Ribeira, os violentos incêndios que devastaram a cidade, e desorientação e sofrimento geral do povo.
São de notar duas atitudes diversas. Organizado à volta do sr. Q., este conjunto de pessoas procura, desde a primeira hora, agir de forma racional e organizada, de modo a dar a melhor resposta à situação: salvar individualmente a vida, mas também procurar salvaguardar os bens existentes na casa comercial. (...) 
Ao contrário disso, entre o povo geral instala-se desde o primeiro momento um estado de desorientação e fatalismo profundamente negativo. (...) O povo é visto como abandonado a si mesmo, pasto do seu pânico, das suas crenças e preconceitos e da má organização colectiva. (...)
"Dos meus criados domésticos nenhum está em casa. Vagueiam todos pelos campos, e seguem as imagens religiosas que os monges transportam".
"Aqui não há produtos alimentares nem pão. É como um deserto e não sei como vai ser, pois tudo está na maior confusão. O Rossio está tão cheio de gente que não há lugar para todos."
"Ninguém se preocupa com o fogo, e não se faz absolutamente nada para o apagar. Oiço ali ao lado que há ladrões a lançar fogo nalguns lugares, para mais depressa poderem roubar".
"A gente vulgar, e em parte também as pessoas de condição, não pensa senão que vai chegar o dia de juízo..."
"Não se encontra ninguém que queira trabalhar por dinheiro."
"Os monges andam por aí com a cruz e o povo vai atrás; em lugar de incutirem coragem ao povo, levam-no para fora da cidade e gritam sempre: o fim do mundo está aí."
A última carta, escrita já seis meses após o terramoto, alarga-se um pouco mais em considerações sobre a situação comercial, a alta dos preços, a especulação imobiliária e a reconstrução da cidade. O governo despótico, a condição miserável do povo, a má organização social, o catolicismo fanático e a superstição popular são elementos de um quadro português, presente no espírito europeu da época.