domingo, 6 de abril de 2014

O último maçaricão-esquimó 28

(...) 
                 Pela manhã o vento amainou. O macho sabia que tinham de continuar a voar, não podiam ficar ali mais tempo. Quando as nuvens carregadas de neve se dissolveram e o sol atravessou a névoa com uma luz amarelada, levantaram voo e avançaram para o manto que ocultava os cumes. Um minuto depois encontravam-se num mundo fantástico de neblina branca, cuja humidade lhes pesava nas penas. Subiam penosamente, em círculos. Tinham de ganhar altitude, mas o ar era agora tão rarefeito que pareciam mover-se no vazio. Mesmo com os pulmões cheios, respiravam com dificuldade.
            A camada de nuvens era muito instável e cheia de turbulência. Ocasionalmente encontravam camadas de ar mais denso, que as asas cortavam melhor, e ganhavam altitude rapidamente. Mas logo o ar se rarefazia, e, por momentos, mal se podiam manter. Uma vez clareou por cima deles, e o maçaricão sabia que estavam perto de atingir o céu claro. Mas, antes de conseguirem furar as nuvens, uma rajada descendente arrastou-os consigo. Caíram desamparados, e perderam em poucos segundos a altitude que lhes levara muito tempo a ganhar.
            Finalmente deixaram para trás as camadas agitadas de nuvens e voaram num céu claro e tranquilo. Era um estranho mundo encantado, de um frio penetrante e uma luz que cegava, e que parecia desligado de tudo o que havia na terra. A camada de nuvens estendia-se por todo o horizonte, uma planície branca, ondulada e vastíssima. Quase parecia sólida bastante para poisarem. O sol reflectia nela o seu brilho intenso. Mil e quinhentos metros adiante deles, um pico nevado rompia as nuvens. O seu cume era um penhasco nu e inteiriçado. Ao longe havia outros cumes, como ilhas, num vasto mar de brancura.
            Os maçaricões voaram rente à camada de nuvens, ao encontro do pico. Avançavam lenta e penosamente. Voavam de bico aberto, ofegantes no ar rarefeito, e os corpos doíam-lhes. Ao aproximarem-se do cume o vento refrescou de novo. Farrapos de neve turbilhonavam pela encosta. Evitaram-nos e poisaram, para descansar numa aresta do penhasco, donde o vento varrera a neve. E de novo tinham que padecer. O ar seco e rarefeito tinha-lhes perturbado fortemente o equilíbrio dos líquidos. As gargantas ardiam-lhes de sede.
            Menos de cem quilómetros adiante floriam exuberantes orquídeas e cactos do verão tardio sul-americano. Mas aqui, no tecto das duas Américas, seis mil metros acima do nível do mar, reinava um inverno sem fim. Mesmo por baixo deles encontrava-se um mundo incerto e assustador. Massas brancas misturavam-se umas nas outras, mal se distinguia onde terminavam os montes nevados e começavam as nuvens. Nenhuma criatura podia manter-se aqui por muito tempo. E apesar disso encontravam-se traços de vida, uma vez que grande parte da falésia era constituída por esqueletos fossilizados de animais marinhos, que tinham vivido há milhões de anos, quando os continentes ainda não existiam, e o cume da montanha era apenas lodo no fundo dos oceanos.
            As dores abrandaram e os maçaricões continuaram para Oeste, sobre a neve que o vento moldara, acima da camada de nuvens. E longo tempo continuaram em frente, evitando o manto branco, pelo menos quando não sabiam exactamente o que havia lá por baixo. Atrás deles desapareceu o pico, num véu de neve e neblina. E então abriu-se o tapete de nuvens. A camada contínua e plana deu lugar a fundas depressões de causar vertigens, e a elevadas colunas brancas. Vieram ainda poços maiores, e num deles caíam a pique as paredes sem fundo. Através dele avistaram um planalto arenoso, parecido com um deserto, com manchas verdes e acastanhadas, de cactos e cascalho. Estava quatro ou cinco mil metros abaixo deles, pois a Oeste caíam os Andes abruptamente para o Pacífico.
(Cont.)