Durante cinquenta anos foi dos meus maiores amigos. Desbravámos em conjunto a juventude, e a custo abrimos caminho nas trevas donde partimos. Conhecemos a insânia dos sertões, abominámos heróis, e acalentámos os sonhos que iam chegar amanhã.
Mais tarde deu-me agasalho e conforto, matou-me a fome sem regatear, tolerou-me as confidências de novato. Até que um dia uns amigos, que andavam nas eleições, vieram pedir-me um texto para a folhita de campanha dum partido concorrente. Custou-me desapontá-los. Para mim o grande inimigo era a velha oligarquia, desde sempre, decadente e envenenada. Lá lhes escrevinhei uns votos pios, umas balelas que o vento em breve levou.
O meu amigo logo me atirou aos cães. Acusou-me de traições ficcionadas, de infamantes heresias, de crimes de lesa-fé. Tal como o provocador ao serviço inimigo, enterrara-lhe nas costas a facada mais ignóbil.
Eu pus-me a pensar na vida, até que deslindei aquela insânia. Eram ordens do Stalín. E finamente entendi os desperdícios da história, os delírios, os desmandos e os destroços. Os passados e os presentes, para não falar dos futuros.
Para nossa comum desgraça, não nos tornámos a ver. E não viriam daí grandes dramas ao mundo, se isto não fosse o reflexo de tragédias bem maiores.