1 - O Nº 127 da revista LER traz uma notícia curiosa. De acordo com um estudo feito em Inglaterra, mais de 60% dos leitores que enchem a boca com os clássicos do cânone nunca os leram. Os Shakespeare, os Proust, os Guerra e Paz, os Crime e Castigo, os Orwell, os Joyce e outros quejandos (deixando em justa paz os Dante, os Virgílio, os Homero...) são assim uma espécie de espantalhos de palha, com que muitos académicos enfeitam a paisagem da vida. Já se suspeitava disso, e não será aqui nem agora que alguém se vai pôr a atirar pedras!
2 - O trabalho de locução na Sonora tem múltiplas vantagens e um grande inconveniente: uma vez iniciada, a gravação duma obra já não pára. Ninguém pode chegar à pagina vinte e devolvê-la à estante. Amargo será o cálice, mas bebe-se até ao fim. O último que me coube e tenho em mãos é a Montanha Mágica, de Thomas Mann, com 850 páginas editadas pela D. Quixote, em tradução de Gilda Lopes Encarnação.
3 - Em regra, (é a experiência empírica que o revela), um texto depressa impõe ao locutor a sua voz, o seu timbre, o seu ritmo, a sua toada e o seu compasso próprios. Se eles não forem respeitados, a coisa não bate certo. E quanto mais apurada for a qualidade do texto, mais depressa a exigência se mostra. Bastam por vezes meia dúzia de páginas.
Será este um improvisado argumento suplementar de análise crítica. Mas se o texto não impõe ao leitor uma voz própria... é porque a não contém, é porque ela não está lá dentro. Culturalmente será uma lança em África, mas enquanto Literatura não passará de um equívoco. Ora esta Montanha Mágica, a páginas 350, continuava em silêncio.
Isso pode transformar a locução (que é uma leitura em voz alta) num exercício penoso, em que o locutor tem que vestir ao texto um sobretudo usado, para poder sobreviver na solidão da cabine: a toada irónica da pantomima é um recurso divertido, que aqui se desvenda em confidência.
4 - Hans Castorp, um jovem burguês de Hamburgo que prepara carreira na engenharia naval, visita o primo Joachim Ziemssen, o qual acalenta projectos de vida militar e está internado no Berghof, um sanatório em Davos-Platz. Vai por uma semana e ficará sete anos. Passa-se isto nos inícios do século, antes da descoberta da estreptomicina, antes da 1ª Guerra Mundial.
As figuras do director Behrens, do doutor Krokowski, do humanista Lodovico Settembrini herdeiro do espírito carbonaro italiano, e dum controverso jesuíta, o judeu Leo Naphta, ocupam o palco narrativo por onde desfila minuciosamente a vida no sanatório, entre um sem-número de tipos secundários mais ou menos exóticos, de ambos os sexos. É neste teatro do Berghof que Hans Castorp mergulha, como quem entra num mar de erudição e eloquência onde cabe a vida inteira. Não há tema, nem assunto, nem matéria que não entrem no desfile: a história, a física, a botânica, a filosofia, a arte, a farmacologia, a pedagogia, o protoplasma, a anatomia, a medicina, a literatura, a química, a teologia medieva, o luminoso renascimento humanista, a música, o lied alemão, a religião, o espiritismo, a sociologia, a igreja, o tempo, a eternidade, a morte, o amor, a liberdade... É um banho lustral de conhecimento e descoberta.
5 - No texto predomina a descrição exaustiva e minuciosa; o pseudo-diálogo quilométrico e esgotante; a longa dissertação argumentativa; a divagação irrelevante muitas vezes. E apenas, de horas em quando, a propósito de alguma peripécia, surge um pequeno excerto narrativo em que o texto ganha uma voz específica.
Formalmente (por fragilidades da tradução?), o discurso é pesado e indigesto, usa e abusa da frase longa, complexa, com subordinada atrás de subordinada. A pp. 502 e 520, adopta mesmo a aberração semântica corrente e analfabeta: "(fulano) teve que abandonar o colégio, por se encontrar em risco de vida."
6 - Thomas Mann recebeu o prémio Nobel em 1929. E a Montanha Mágica pode muito bem ser "uma enciclopédia da vida, em que há páginas inesquecíveis de beleza e insólita originalidade". Porém não creio que à literatura sirvam as motivações do tratado científico, nem creio que nela caibam as funções do ensaio académico. Se isso era assim há um século atrás, com o Bildungsroman, há muito tempo que já deixou de o ser. Por isso eu compreendo os leitores que se furtam ao cânone e poupam o seu tempo e a paciência. Vou desenterrar o Tonio Kröger, de um Thomas Mann que já tinha esquecido. Há-de andar ali nalguma estante há décadas, e trouxe-me a propósito uma boa lembrança. Com todo o respeito pelas eminências, voltarei depois à arte das palavras e à literatura a sério. Às manobras de tiro tenso e aos textos de quinze linhas, onde ela cabe toda e onde habita.