Quando o cachorro se aventurou à porta, logo o talhante fez o que tinha a fazer. Pô-lo na rua. Os cachorros trazem raiva, trazem pulgas, abrem portas ao mosquedo. Mas o cachorro insistia e o talhante voltou a correr com ele. Andaram nisto. Até que o homem, já esgotada a paciência, reparou no papelito entalado nos caninos do bicho.
O papel trazia uma encomenda. E enrolada na encomenda vinha uma nota de vinte.
O talhante puxou da faca grande, deu-lhe o fio do costume, e separou duma peça três bifes da rabadilha. O cachorro acompanhava-lhe os gestos com meneios de cabeça.
O talhante fez uma trouxa num saco, juntou-lhe uns trocos da caixa, pôs-lha à frente do nariz. Fez-lhe uma festa no lombo. O cachorro entalou-a nos caninos e dirigiu-se à porta, apaziguado.
Vi o talhante a encolher os ombros, mas fiquei em sobressalto. E no passeio pus-me a olhar o cachorro. Lá vai ele, muito produzido, é claro que dá cartas a muito cidadão. Vira na esquina da avenida, aguarda pelo semáforo, pôe-se a subir a calçada. E só vai parar à porta duma casita baixa, num rés-do-chão do bairro das Colónias.
O cachorro empinou as duas mãos à fechadura da porta. Depositou a trouxa na soleira, voltou a erguer-se até ao puxador, e foi então que perdeu a compostura. Deu dois golpes numa aldraba arredondada, foi arranhar nos vidros duma janelita, e acabou mesmo por soltar alguns latidos.
Um homem, seria o dono, veio entreabrir a porta. Era um homem obeso, desconforme, e dirigiu-se ao cão em altos berros. Acabou por atirar-lhe um pontapé aos queixos, enquanto ameaçava piores penas.
Era a altura de chegar o sétimo de cavalaria. E eu decidi-me a intervir, mas lá na sua o homem tinha razão. Pela segunda vez nessa semana, o cachorro foi à rua e deixou a chave em casa. Uma falha inaceitável, se eu a não tivesse visto não acreditava.