Os pobrezinhos
Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram os pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, além de serem obviamente pobres, deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbados, e sobretudo manterem-se orgulhosamente fiéis à tia a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria.
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da menina Teresinha.
O plural de pobre não era pobres. O plural de pobre era "esta gente". No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio em que os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas, junto à estrada militar (...). E as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito, que esta gente tem piolhos. (...)
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros.
- O que é que o menino quer, esta gente é assim. (...)
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. (...)
Na minha ideia o padre Cruz e a Sãozinha eram casados. Tanto mais que no Almanaque da Sãozinha se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos.
Creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão, que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis."