Escuta, vou falar-te do rapazito que o Álvaro de Campos tanto julgou amar. Era inglês, naturalmente, e tinha dezasseis ou dezassete anos quando o encontrou em Londres, numas férias do último ano de Glasgow. Frederik era o quinto filho dum pastor de almas de York, estudava arte dramática, e levava uma vida que não se poderia dizer fácil, pois a mesada do pai, quando havia necessidade de meias-solas nos sapatos, obrigava a apertar o cinto. Álvaro, sentindo que o rapaz estava em apuros, convidava-o frequentemente para jantar. Mas não era apenas essa a razão.
Como dispunham de tempo, passavam algumas tardes estendidos na relva de Hampstead, mas não iam além de algumas carícias, com receio de serem surpreendidos. Freddie falava do feno e dos potros de Yorkshire como se neles começasse o paraíso, e o outro ia-lhe revelando alguns segredos dos versos de Shakespeare e de Walt Whitman; um dia falou-lhe mesmo duns assomos de sensualidade que, nos sombrios corredores do liceu, havia sentido por uma espécie de rapariga, antes de ir para Glasgow; mas amar alguém assim era a primeira vez que lhe acontecia, acabou por dizer numa voz escura, quase espessa, que não era a sua. Ao despedir-se, Freddie pediu-lhe que passasse pelo seu quarto na manhã seguinte. Apesar da casa estar deserta a essas horas, o medo quase impedia que o amor lhe baixasse ao corpo. Foi numa dessas manhãs, quando o rapazito começou a recitar Shall I compare thee to a summer's day?/Thou art more lovely and more temperate..., que o Álvaro lhe mostrou como deveriam ler-se versos de Shakespeare, ou de quem quer que fossem: com a naturalidade que tem o correr da água e o ritmo da fala. Isso Frederik nunca mais o esqueceria.
Não me perguntes como soube eu tudo isto, seria muito indiscreto da tua parte.
[Eugénio de Andrade, O rapazito de York, pág. 408]