O que andarão a fazer os pensadores e os intelectuais indígenas, gente com obra feita na literatura, nas artes plásticas, na filosofia, no teatro, no cinema, na música, etc. Silêncio ensurdecedor.
Ou quase! E vem isto a bom propósito duma recente entrevista do João Tordo a uma rádio qualquer, e dum romancinho novo que aí vem.
Quando os oiço dizer, aos júniores e aos mais séniores, que gostam muito de livros, que os livros são o seu destino e fundamento, baixo logo a viseira e alço a guarda. Porque muito preferia ouvi-los jurar amores às palavras, e à literariedade que com elas se pode construir, e às malas-artes que a literatura traz lá dentro, para nossa salvação como leitores dela. E como homens. E como cidadãos. E como espíritos que exigem mais alimento, do que o pobre feno bíblico quotidiano para se manterem vivos, e gemerem o fadário que lhes caiba. É a minha versão do velho assunto dos formalistas russos, uns tipos que nos inícios do séc.XX agitaram os territórios da arte literária com teorizações inovadoras, e foram decapitados, com danos gerais, pela espada dos poderes.
Para voltar à vaca fria, o que eles querem dizer é que gostam do mercado dos livros, desse palco em que lhes cabe o papel de autores, imodestos e vaidosos, muitas vezes, e estranhamente, arrogantes e patéticos, auto-centrados narcisos e umbiguistas. Uma espécie de deuses-criadores no uso da palavra! Do que gostam é do marketing que os impinge aos totós consumidores, e os traduz como pepinos nas línguas mais exóticas, e lhes dá um alvará de fama que a contabilidade dos números valida em aparência. Escamoteiam, ou não fazem ideia, de que a arte e o mercado pouco ou nada têm em comum. Bem ao contrário, o que terão é uma guerra-fria silenciosa, em que a arte perde sempre, neste tempo em que o mercado e o dividendo são imperadores absolutos.
Porque é que deixou de haver crítica literária digna desse nome, ou rara? Porque será que o editor de sucesso deixou de ser a marca de água que já foi, para ser apenas um agenciador de lucros e cotações na bolsa? Simplesmente para não levar com a tábua no cu! E porque é que J.R.dos Santos é de longe o maior criador de arte literária da nossa cultura? Se eu lho pudesse perguntar directamente, dir-me-ia que o meu mal é dor de corno. E eu respondia-lhe, em modo de leitor grosso amante das palavras, vai-te foder! Ficávamos os dois amigos e iguais na grosseria.
Nisto tudo o João Tordo até merece. Respeita escrupulosamente a nossa língua, que tantas vezes se arrasta por aí a cair da boca aos cães. Isso bastará para produzir passatempos de aeroporto, romancinhos de intervalo entre telenovelas, não mais que isso. São todos muito parecidos, na Patagónia, na Tasmânia, em Anchorage ou na Lapónia. Só têm por baixo deles a cultura do google, esse digest pronto-a-deglutir. Possibilitam traduções e vítimas nas melhores línguas (sic!), do malgache ao swahili, ao dialecto das Fiji. Mas muito pouco (ou nada) acrescentam à linguagem das artes literárias. Porque a arte, no mais geral e no particular, não se constrói por actos de voluntarismo empreendedorista. A arte nasce da vida e das tripas dela, e só acontece quando ela quer. Quando já se recusa a germinar lá dentro. Está madura e sai, não há vontade que a possa parar ou apressar.
Claro que o Tordo não sabe nada disto, pois nisto nunca pensou. Mas anda por aí muito pior, um deus-nos-livre! Há o Valter Hugo-Mãe, atarefado ainda a escolher um dialecto, uma questão muito antiga que ele tem. Enquanto leva às lágrimas festivais literários com rosários de emoções pias. Há o rapaz de Galveias, que consome a vida a pedir colo, e a distribuir afectos a viúvas infelizes. Há o Gonçalo M. Tavares, que malbarata tijolos de papel a explicar-nos enigmas ortorrômbicos, e a verdadeira natureza dos quasi-cristais. E outros que tais!
Todos têm o prémio Saramago, ou o dos despojos dele, e alguns vão chegar ao Nobel, se uma pitonisa não mentiu. Têm pendurada na parede uma colecção de prémios avulsos, dados por júris que têm por aval o ex-épico Alegre, um peixe em águas tranquilas. São todos eles descobertas da Rosário Pedreira, e vivem todos felizes, benzós-deus, que este mundo é um grande logradouro.
Os escritores séniores, consagrados, são agentes da cultura, indispensáveis. Já têm lugar no cânone e dormem sossegados. Porém em termos de arte não andam, em boa parte, muito longe disto. Têm as reverências do mercado, e alegremente ignoram-se uns aos outros. Desconhecendo que os artistas-criadores, génios das únicas obras que o tempo respeitará, são humildes, são discretos, são humanos, só fazem sombra depois de o sol nascer. Deles nos há-de vir sempre a santa literatura, e as malas-artes dela!
Mas dói, e merecíamos melhor, que este silêncio dos intelectuais!