Diz a reporter que Pedro Nuno Santos entregou para análise da AR o programa do governo, fechado em dossier de capa branca. E mais não soube, para além daquilo que lhe foi servido.
Parece-me este gesto prática assisada: a reserva do que reservado é, e a tempo certo será fornecido à imprensa. Tudo o que vá além disto é contributo para um salame espúrio, que não serve a informação, mas aproveita ao mercado da especulação de que muita gente vive. É pesporrência abusiva duns senhores jornalistas, uns supostos eleitos, habituados à alegre salgalhada das comadres de soalheiro, que lavam na fontana as fraldas íntimas do mundo. É sadio que se vão acostumando a outras práticas! Porque tudo o resto é paleio de rata suja, disfarçado de falsos conceitos sobre a liberdade!
Há dias emitiu a RTP1 um programa assinalável (e raro!) sobre o 25Nov75. E o milagre que foi ter-se evitado o que era um banho de sangue prometido. Houve um santo qualquer, de nome Melo Antunes, que depois de ter feito perceber a Cunhal o que nos aguardava a todos, o aconselhou a desmobilizar os militantes. E no dia 26Nov, foi ainda um santo a afirmar na televisão que o PCP era indispensável para a construção do socialismo e da democracia portuguesa. Era o que se usava então dizer.
Assim acabou por ser. E quem ficou descalça foi a sanguinária direita fascista, revanchista, incendiária, bombista, criminosa e marginal, que vinha afiando as facas longas desde o 25. Naquela memorável noite em que o Salgueiro Maia escorraçou a besta do Terreiro do Paço e a açaimou no Carmo, dentro duma Chaimite. Honra lhe seja feita, por mais uma vez que seja!
No programa vimos desfilar figuras múltiplas, civis e militares, com diversos papéis e desempenhos. Doa a quem doer, de marcar a ferro e fogo são os militares Jaime Neves, Alpoim Calvão não ouvido, um Morais da Silva marioneta, e vários outros que a sombra preservou. Livrámo-nos de boa, todos nós! ***
A mim, pessoalmente, esse notável programa trouxe-me, implícita, a resposta a uma questão que há 40 anos me persegue. Cada um de nós tinha a noção de que tudo estava maduro entre dois campos: quem primeiro mostrasse a cabeça, mais depressa a perderia!
E eu sabia, em princípio. muito bem, que a tropa não se movimenta sem ordens. Admitamos, vá lá, num quadro de grande perturbação geral, da inevitável anarquia, das contradições ideológicas, das flagrantes provocações montadas pelo chefe do Estado Maior da Força Aérea, para desmantelar o regimento dos páraquedistas em Tancos (nesse tempo pertencentes à FA), que não era indispensável uma ordem, um comando, no sentido estrito. Admitamos que uma sugestão, uma voz, um simples som emitido por alguém, bastaria para desencadear movimentos já dificilmente controláveis. Os páras saíram do regimento e ocuparam várias bases aéreas, exigindo a demissão da marioneta, o general graduado Morais da Silva. Mas às ordens de quem?!
O programa respondeu-me a isso, com altíssimo grau de probabilidade. A garantia total, porém, está fechada num único par de lábios que nunca se abrirão, por discreção, por índole e por princípios que ainda há quem respeite e cultive. E eu cheguei, assim, à maior verdade possível, tal me basta.
E é para voltar à vaca fria dos senhores jornalistas, que arranco da lembrança uma figura patética e vaidosa: o já falecido Aventino Teixeira. Despejava garrafas no Procópio, e do Livro Vermelho conhecia as tácticas, o restante nunca chegou a lê-lo. Mas cumpria fielmente a função de bufo do EXPRESSO, sobre tudo quanto se passava nas assembleias de delegados do MFA, ali à Cova da Moura.
A maior parte de nós, militares delegados, do Exército, da Marinha e da Força Aérea, padecíamos da mais completa iliteracia política. Tomávamos de dia algumas luzes de análise, para poder jantá-las à noite. A História deixara-nos na mão a hercúlea tarefa de ajustar contas com uma história falhada de séculos. E as circunstâncias não nos deixavam escusa. Dos políticos futricas ninguém podia esperar milagres, exceptuando o supremo sacrifício de muitos militantes comunistas, esses únicos davides que enfrentaram o golias da Pide, durante décadas, numa guerra de ferro. E a fuga de informação para o Expresso, que nos provocava sérias dificuldades, foi várias vezes falada mas nunca resolvida. Nem as perturbações que daí vinham.
Assim voltámos ao princípio, e aos inconvenientes da badalhoquice informativa. O sol já vai ao cimo da encosta, além na cumeada. E esta nossa vida será bênção dos deuses, mas ainda não é o da Joana. Vamos a ela e deixemos as considerações vadias.
*** Um general do Exército, que fugazmente foi ouvido no programa e já tinha idade para ter juízo, vem hoje num jornal a soltar uma boca, numa comemoração a que presidiu há dias. Elogiou ele o papel do Norte, e sobretudo da Igreja, na "caminhada" para o 25 de Novembro. Na qual ela interveio "trabalhando de dia e conspirando de noite". Para quem tem memória não há nisso novidade. Lembra-se ainda de Vila Real, onde o padre Max foi assassinado. E o cónego Melo, antes de morrer, sabia bem por quem.
Já Ramalho Eanes respondeu sabiamente aos defuntos insepultos das celebrações da data na Assembleia. E convirá distinguir entre o cu e as calças dele: Eanes nunca foi, como alguns eram, um anti-comunista assassino e tresloucado. Livrámo-nos de boa, todos nós!