Um dia destes, a pretexto dum festival literário qualquer, ouvi no rádio as intervenções duma dupla de eruditos que enfeitavam uma mesa. E qualquer deles se esmerava, e se espraiava, regalado a ouvir-se a si próprio sobre as obras literárias da sua vida. Lá aparecia o don Quixote, e a Divina Comédia, e a Musa Irregular, e o Assis Pacheco, e o Cavaleiro Andante, e os saudosos livrinhos de cobóis aos quadradinhos. Estava lá tudo, naquelas cabecinhas. Só lá faltou o público leitor, que certamente acorrera a ouvi-los na plateia. A esse não foi dada a palavra.
O assunto não tem a mínima importância. Como leitor, eu é que lhe aproveito a embalagem para referir as duas obras que maior emoção me provocaram: o Memorial do Convento, do Saramago dos anos oitenta, e a Crónica duma Morte Anunciada, do Garcia Marques (1981). Tomando um assunto mínimo (a devolução à mãe duma noiva já furada pelo noivo defraudado, e a honra lavada pelos irmãos dela que esfaqueiam o ladrão), o colombiano constrói uma narrativa que é um milagre da arte literária. Para que conste, se constar.
Porém, é a questão do desprezo pelos leitores, por parte duns letrados que gostam de se ouvir, que agora aqui me move.
Há dias veio à BMEL o Luís Sepúlveda, a receber o prémio Eduardo Lourenço, do Centro de Estudos Ibéricos. Ora ter o Sepúlveda ali à frente é uma benesse. À tarde a cerimónia decorreu com muito palavreado. Mas à noite era um encontro com os leitores, que encheram o auditório.
A conversa começou depois das 21H30. O vereador da cultura disse as prolixas larachas que lhe competiam, e o Fernando Paulouro, do Jornal do Fundão, foi o moderador. O Sepúlveda falou do Chile da sua juventude, e dos sonhos do teatro, e de como se tornou membro da guarda do palácio e do presidente Allende. E foi emocionado que lembrou que a 11 de Setembro de 73, o Chile desapareceu. Com o assalto final de La Moneda, a resistência até à última bala, e o assassinato do companheiro Allende
Depois foi a prisão, e as peripécias todas que seguiram pelos países da América do Sul. Até que uma delas o levou à Amazónia, e a'O Velho que Lia Romances de Amor.
O Paulouro lá conduzia as coisas, lá renovava perguntas... Lá pôs o Sepúlveda a encher pneus, a referir miudezas insignificantes e despiciendas. Às 23H30 lá lhe pareceu demais, e a sessão terminou sem sobressalto.
É uma pena, mas não há nada a fazer. Estes letrados de merda só se ouvem a si próprios. E não percebem que o fundamental de tudo é o encontro dum autor com os seus leitores, é o que aprender com eles se para aí estiver virado, é tudo aquilo o que lhes der de seu. Só isso é criativo e vale a pena, só isso é cultura. humanidade e arte. E nada disso faltava ali no Sepúlveda.
Cheguei a casa era quase uma da manhã. E lá fui passar os olhos fatigados e raivosos pel'O Velho que Lia Romances de Amor.