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- Jornalista: Como teve a coragem de publicar agora ensaios sobre o colonialismo português, escritos antes do início da guerra colonial?
- Eduardo Lourenço: Eu vivia em França, que naquela altura tinha problemas que seriam uma antecipação do que nós viríamos a ter.
- A guerra da Argélia.
- Sim, eu segui com grande paixão o que se passava na Argélia, porque mesmo um país democrático como era a França teve grande dificuldade em lidar com um desafio como o da perda da Argélia. A França, cuja Revolução produzira a ideia universal de alinhar os homens pela sua condição humana, separando-os da referência meramente étnica ou nacional, no sentido que o séc. XIX lhe vai dar. Mesmo em França, onde a problematização era possível, porque a situação colonial era incompatível com os princípios da Revolução, não foi fácil superar o trauma da Argélia.
- Em Portugal, era possível.
- Não havia problematização. Os colonos estavam em África como se estivessem em casa. Nessa altura comecei a escrever estes textos que são uma reflexão acerca de nós, de Portugal como nação colonizadora, ou colonialista, como se disse depois a título póstumo. Mas enquanto o vivemos, até à rebelião africana, era um colonialismo inocente.É uma das dimensões do país que historicamente fomos. Éramos uma nação que se espalhou pelo mundo, e que teve a sorte de encontrar para esse momento um poeta de génio, que se consubstancia com o discurso simbólico que temos, enquanto portugueses, para nós próprios. Os Lusíadas davam-nos uma tal boa consciência, que não nos permitia compreender o labirinto em que estávamos encerrados. Sempre houve resistência, mas tudo se passava como se fosse uma lei natural da História. Durante muito tempo, o colonialismo não teve nada da escandaloso aos olhos dos europeus, quaisquer que eles fossem. E entre nós ainda menos, porque a nossa sempre foi uma colonização frágil, de pobres. Havia uma cegueira, que não era percebida como cegueira, mas como uma coisa natural. Por isso dei o título a este livrinho de Do Colonialismo como o Nosso Impensado. É um livro que me dói.
- Mas não renega esses textos.
- Nâo, porque os escrevi com paixão e com a ideia de que se podia ainda acordar, quando já estávamos à beira do precipício. (...) Quando a Inglaterra larga a Índia, a França a Argélia, como é que nós podíamos escapar a uma onda que era universal? Cinco séculos da nossa história são de um país navegador; mas isso trouxe a colonização, que por sua vez implicou uma regressão na ordem colectiva do Ocidente. Voltámos, com uma espécie de naturalidade absurda, à escravatura. O que foi, provavelmente, o maior pecado da nossa História.
- Toda a Europa participou nisso.
- Sim, quase toda a gente participou na exploração de outro continente, de uma forma que ia para além da normal luta de classes. Os povos colonizados suportaram essa presença do Outro, porque não tinham chegado a fases históricas de auto-organização que lhes permitissem defender-se. Mas surgiu um momento, no séc. XX, em que a Europa percebeu que era tempo de regressar a casa. Fê-lo pouco a pouco e nós fomos os últimos. Fomos os primeiros e os últimos.
- A descolonização foi o movimento que marcou o séc.XX?
- Penso que sim. É o fenómeno mais importante da nossa história europeia. Porque trouxe à tona de água outra gente. Até aí a História era nossa porque a escrevíamos. (...) Mas os outros povos não eram sujeitos autónomos do seu próprio futuro. Durante milénios, o futuro foi escrito numa perspectiva ocidental, primeiro grega, depois romana. Os outros encontravam-se em estádios de evolução rudimentar no que respeita à capacidade de controlar a natureza (...). As outras culturas não têm um Fausto, um Prometeu... (...)».
[in Revista LER nº 138]