sábado, 25 de julho de 2015

Subprimes

1 - A arte em geral, e a literatura em particular, têm uma função na nossa vida. E surgem, nascem, brotam de um contexto específico: pessoal, social, cultural, civilizacional. É daí que saem, é isso que repercutem, é a isso que tentam responder. E assim será obrigatoriamente, sob pena de nada ser. Desenraizada de qualquer realidade, a arte é uma flor tosca de plástico.
2 - A esta Europa decadente e colonizada, é da América que chegam as primícias culturais que por cá se incensam. Qualquer inovação que justifique realce e prometa futuro vem da terra da promissão. (Já na década de 80, com Menos que Zero, o celebrado Easton Ellis nos mostrava quadros sugestivos da sociedade americana, particularmente da sua juventude; mas aqui há um salto em frente.) 
Foi também de lá que veio o subprime (financeiro) de há uns anos, quem tiver memória ainda se lembra dele. Mas há subprimes vários, em arte é um vê-se-te-avias! E há sempre uns trombeteiros avençados que vivem de os difundir.
3 - Foi assim que há tempos me chegou notícia dumas histórias curtas, duns contos breves duma autora americana que fazia furor. Ora nem mais, textos duma dúzia de linhas são hoje para mim a quintessência da literatura, num mercado que lá vai vivendo de verbos de encher. Verdadeiras práticas de tiro tenso, são modelos de economia, concisão e domínio da língua, em que cada palavra tem um lugar único. Encomendei a obrinha numa livraria e logo a trouxe para casa.
4 - "Lydia Davis é hoje uma das mais originais e importantes escritoras norte-americanas. Os seus contos breves revelam uma enorme acuidade emocional, grande imaginação e um particular talento para capturar a vida em alta velocidade. (...) Em 2013 recebeu o Man Booker International Prize.
(Isto é o que se lê na badana.)
- "A obra de Lydia Davis é única na literatura americana." (The New Yorker)
- "Um conto de duas linhas de Lydia Davis ou um parágrafo aparentemente insignificante, invade-nos e persegue-nos." (The Guardian)
- Davis captura palavras como um caçador, e usa a pontuação como uma armadilha. Uma mente ousada e original." (The Sunday Telegraph)
(Isto são citações da contra-capa.)
5 - 
Não posso nem quero
Recentemente não me foi atribuído um prémio porque, disseram, eu era preguiçosa. O que eles queriam dizer com preguiçosa era que eu costumava ser demasiado concisa: por exemplo, não escrevia a forma mais extensa da frase eu não posso e também não quero, e em vez disso abreviava-a para não posso nem quero.
Bloomington
Agora que já aqui estou há algum tempo, posso dizer com toda a confiança que nunca estive aqui antes.
As papas de milho
Esta manhã, a tigela de papas de milho quentes, pousada sob um prato transparente e ali deixada, cobriu a parte inferior do prato com gotas de condensação: também ela decidiu tomar medidas, dentro das suas possibilidades limitadas.
Contingência (VS. Necessidade) 2: De férias
Podia ser o meu marido.
Mas não é o meu marido.
É o marido dela.
E por isso tira-lhe uma fotografia a ela (e não a mim), com a sua roupa de praia às flores, em frente da velha fortaleza.
O mau romance
Este romance aborrecido e difícil que trouxe comigo na viagem - continuo a tentar lê-lo. Já regressei a ele tantas vezes, receando-o sempre e achando-o sempre tão mau como da vez anterior, que com o tempo acabou por se tornar uma espécie de velho amigo. O meu velho amigo: o mau romance.

(Alguns destes contos são anotados como 'sonho'. De facto apresentam lógicas estranhas, algo oníricas. É a autora que explica, em nota final, que "foram escritos a partir de sonhos nocturnos meus, ou de experiências semelhantes a sonhos que tive acordada; e a partir dos sonhos, experiências semelhantes a sonhos, e cartas de familiares e amigos".) Um exemplo:
O Adro
Tenho a chave do adro e abro o portão. A igreja fica na cidade e tem um grande terreno em volta. Agora que o portão está aberto, entram muitas pessoas que se sentam na relva para aproveitarem o sol. 
Entretanto, as raparigas da esquina estão a pedir dinheiro para a sua sogra, que se chama "La Bella".
Ofendi ou desiludi duas mulheres, mas estou a embalar Jesus (que está vivo) entre um amontoado aconchegante de pessoas.
6 - Comentários para quê?! É preferível responder a estes objectos de leitura na mesma moeda: aliená-los. Como não conheço ninguém de confiança no Sunday Telegraph, nem no Guardian, nem no New Yorker, vou limitar-me a devolver o livrinho cheio de notas ao editor, num envelope verde almofadado. Depois de transcrever da pág. 239, um dos seus raros contos úteis que não chegam para o salvar.
Escrever
A vida é demasiado séria para eu continuar a escrever. A vida costumava ser mais fácil, e muitas vezes agradável, e então escrever era agradável, embora também parecesse sério. Agora a vida não é fácil, tornou-se muito séria e, por comparação, escrever parece um pouco disparatado. Escrever não é, muitas vezes, sobre coisas reais, mas depois, quando é sobre coisas reais, está muitas vezes a ocupar o lugar de algumas coisas reais. Escrever é demasiadas vezes sobre pessoas que não aguentam mais. Tornei-me entretanto uma dessas pessoas. Sou uma dessas pessoas. O que eu devia fazer, em vez de escrever sobre pessoas que não aguentam mais, é pura e simplesmente desistir de escrever e aprender a aguentar. E prestar mais atenção à própria vida. A única maneira de me tornar mais inteligente é não voltar a escrever. Há outras coisas que eu devia estar a fazer em vez disso.
[Para completar o ramalhete, não falta, na tradução, o pormenor imbecil duma tarde solarenga e dum jardim que também o é. Mas felizmente nenhuma figura corre perigo de vida. Já não é mau!]