segunda-feira, 25 de agosto de 2025

As Aves Levantam contra o vento 7-9

Ali ficámos encerrados três dias, no meio daquele deserto, até que a neve deu sinais de amainar e o carro preto apareceu outra vez. O passador abriu o portão a chamar-nos aos berros, chegámos ao desvio e lá estava ele à espera, outra vez os mais pequenos fechados no cofre da traseira e oa restantes nove lá dentro, só parámos ao princípio da noite já depois de Tolosa, o carro preto nunca mais o tornámos a ver.

Com muita pena nossa, que tínhamos à espera a parte mais custosa da jornada. Toda a noite a andar, Pirinéus afora em caminhos de cabras, com a neve a tornar tudo mais bicudo. Cada um se guiava pelo vulto da frente naquela escuridão, ele havia ladeiras que só podiam ser iguais às que levam ao inferno e ninguém podia falar. A gente sabia que já íamos parar em França, e isso puxava-nos pelo ânimo, se nãoera antes o desespero a empurrar-nos. Mas o gelo atraiçoava o pessoal, as quedas eram frequentes, a dada altura o meu irmão torceu um pé e o passador logo se pôs a ameaçá-lo, quem o salvou ali e o amparou fui eu, mais o outro colega da nossa zona.

Quando entrámos no moinho à beira dum ribeiro tinha passado a fronteira.Já estávamos em França, Deus louvado, e ali ficámos a descansar parte do dia. Atarvessámos depois umas matas compridas, até darmos connosco num lugar onde já havia um rebanho de pessoal, amalhoado à beira duma estrada. Ali nos deram pela primeira vez garrafas de bebida, que disputámos à força, de comida é que não recebemos mais uma migalha até ao destino final. A dada altura pararam ali na estrada dois camiões de caixa fechada, num deles couberam oitenta e cinco homens, contei-os eu, que entrei na derradeira. Lá dentro havia mais limonadas, três baldes para as precisões, e  a porta de trás, tapada por dentro com caixas de cartão. só voltou a abrir-se quando parámos já perto de Champigny.

A viagem durou catorze dias, passadores que nos vieram à mão contei eu quarenta e um, e do que aconteceu depois da nossa chegada, enquanto a vida demorou a tomar algum rumo, não lhe vou aqui falar, ele há coisas que nem se podem contar, ficam melhor guardadas cá dentro.

Depois chegou depressa o tempode ir à tropa, eu estava na idade, e a guerra de Angola começou passado um ano. Nunca me apresentei, deram-me como fugido, se fosse a Portugal apanhavam-me logo. Só lá voltei dez anos mais tarde, casado já com a minha senhora, que é francesa, com passaporte de cá. Para poder voltar à minha terra, por ter fugido à tropa, deixei de ser português.

A tarde vai avançada e Gaspar tem que partir, mas assaltam-no emoções contraditórias e preferia ficar. Um silêncio atormentado toma-lhe conta do peito. Fica a olhar os circunstantes que ao fundo batem as cartas, ouve-lhes as conversas ruidosas, pára nos semblantes melancólicos que ruminam cervejas pensativas. Não encontra as palavras que procura e aqui teriam lugar. E sem elas se despede do seu anfitrião, que o envolve num abraço rude.

Antes de recolher ao hotel, para a sua últims noite na cidade-luz, passa Gaspar na praceta de Saint-Germain-des-Prés. Já não tem nas mãos nada para salvar. Mas queria ainda aprender como se salva o mundo, através de ocupções e da autugestão. Para algum acaso imprevisto.

Nessa noite o mestre faltou ao Deux Magots. E na manhã seguinte Gaspar tinha avião.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

As Aves 7-8

De forma que nos pusemos a pensar, lá em casa já havia a experiência do meu pai, embora antiga, e à palavra dp padre juntámo-nos três, dali daquela zona. Decidimos do dia para a noite, que é a melhor forma de tomar decisões impossíveis, como é sabido. À  procura dum passador foi o meu irmão mais velho ao Sabugal, que sempre foi boa terra para contrabandos. Lembro-me como se fosse hoje, a gente à espera e os dias a fugir, o facto é que a guarda já andava de focinho no ar, estranhou-lhe a presença por ali e meteu-o na cadeia durante uns dias, era assim que as coisas se faziam. Aguentou-se ele com as mentiras que pôde e lá omandaram embora, ao fim duma semana estava tudo pronto, tratámos de pedir emprestado o dinheiro da viagem e fomos ter a Quadrazais.

Ao todo éramos nove, arrancámos atrás do passador ao princípio da noite, meia hora adiante topámos com a guarda. Cada um debandou conforme pôde por aqueles cabeços da Malcata, parecíamos perdigotos assustados, eu deixei para trás o saco onde guardava um pão de quartos e a casaca, no dia seguinte a arrancada foi de vez.

Andámos então dezanove horas seguidas até uma terra espanhola chamada Valverde, sempre a rasgar a direito, e acabámos a descansar num ermo vago, agachados no mato. O passador voltou ao anoitecer  e lá cruzámos a estrada um a um, sempre atrás dele, avançámos ao longo dum lameiro, havia frio, ouvia-se restolhada de cavalos. A dado ponto alcançámos um barracão no monte, donde espantámos uns porcos que lá havia, ali nos deram o primeiro pão com chocolate espanhol, ali passámos a primeira noite em cama quente.

Partimos de madrugada, quando possível por caminhos abertos do campo, bebíamos água se havia algum regato, e se aparecia um chão de areia avançávamos às arrecuas, a desenhar os passos ao contrário, não há como seguir experiências já feitas e exemplos comprovados. Enfim chegámos, numa serra, a uns fortins de cimento, por certo coisas do tempo da guerra espanhola, ali no ermo. Foi onde descansámos uma tarde, numas camas de fieitos que lá dentro havia, ficámos a saber que não éramos os primeiros a passar por ali. O grupo era de nove, e nove se mantinham, embora o meu irmão quisesse desistir logo na primeira e mais longa tirada.

Bem fez ele em se firmar nas pernas e aguentar, que agora vamos deixar de andar a pé, daqui até Madrid viajamos de carro. Somos nove os caminheiros, a esse número temos que juntar o passador, nada feito sem ele, mais o condutor que não podemos dispensar. O conjunto há-de parecer exagerado para tão singela carruagem, mas só a quem nunca se viu nestas alhadas, não é o nosso caso, no ponto a que chegámos já nada nos causa admiração. Este carro preto é único exemplar, com ele nos temos que haver, importa aqui é saber quem são os dois de menos alentado corpo, melhor se encaixarão a par, lá atrás, no cofre das bagagens.

Quem tinha dúvidas bem fará em perdê-las, pois que a Madrid chegámos, e em Madrid ficámos dois dias fechados numa garagem, a pão e chocolate. Ainda hoje estou para saber por que razão ninguém pensava em trazer-nos bebidas, se não era para evitar necessidades de aliviar o corpo, não falo já do vinho a que estas bocas estão habituadas, falo duma limonada qualquer, dum reles pirolito, da água lisa duma bica.

De Madrid viemos, de rota batida e cu tremido, com o fito em Tolosa, o carro preto a dar mostras duma afoiteza que não se adivinhava. Porém, a dado ponto, a neve começou a cair e foi mais forte. Lá encostámos à berma antes de Miranda, num desvio ali a meio do descampado, saltámos cá para fora e logo nos puseram a correr, até chegarmos a um grande barracão que lá havia. (Cont.)

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

AsAves 7-7

A princípio falaram em francês, a tropeçar em cortesias e embaraços, mas quando se descobriram patrícios a conversa ganhou outro à-vontade. Nem de propósito, amanhã é domingo, apareça você em Saint-Denis, na rue des Peupliers, lá nos encontramos todos.

João Carrolo é dirigente da Associação Recreativa Cultural e Desportiva dos portugueses de Saint-Denis. Têm aqui este lugar de encontro, para estarem juntos, para se sentirem gente. Preparam festas, almoços, arraiais, já cá vieram artistas, já tiveram visitas de políticos. Aos domingos passam a tarde aqui, quem quiser vir, jogam às cartas, matam saudades. E Gaspar já se deu a conhecer, já fez as suas perguntas, já quis acamaradar. Já contou ao João Carrolo a sua circunstância, já explicou ao que vem. E enquanto tira de misérias a barriga, fica-se a ouvir do companheiro os motivos e as passadas que o troux em eram até França.

Eu vim do Zabro, lá para as serras da Lapa, nos começos da década de sessenta. Há-de estar a fazer anos a princípios de Março. Pouco se falava ainda em emigrar, nada daquela febre de alguns anos mais tarde, quando os homens debandaram em massa, e as aldeias, uma atrás da outra, ficaram entregues aos velhos, às crianças e às mulheres. Fui dos primeiros e lembro-me muito bem, o padre da ftreguesia era um homem como poucos. Atento às aflições do povo, foi dele o primeiro passa-palavra, havia muito trabalho a fazer em França.

Ora por França já o meu pai tinha andado em mil novecentos e trinta e tal, primeiro numa fábrica de anilinas em Lião, e mais tarde na ilha da Corsa, de machado e serrote nas unhas, a desbastar matagais. A  prova é que sempre andaram lá por casa, se ainda hoje andarão, uns postais do correio já mordidos do tempo, havia umas donzelas que se punham a sonhar e mandavam-nos ao cher Benjamin, já ele tinha regressado à nossa terra, já tinha casado com a minha mãe. Lá saberiam elas o que ficaram a perder, à vista de recado tão teimoso.

Mas vida de pobre não sai do mesmo sítio, por mais voltas que o cão dê. Chegava a gente ao cabo do ano, que era a feira de Agosto, vendia, quem os tinha, gados miúdos e graúdos, comprava-se um leitão para criar, uma vitela ao meio ganho se havia padrinhos de posses, via a gente a animação dos cavalinhos a girarem à roda e deixava de pensar no resto, as girafas atrás dos leões, e os leões a perseguir as zebras riscadas sem nunca as alcançarem, era tal e qual o mesmo jogo sem fim da nossa vida. Trazia a gente para casa uma camisa nova, umas botas de pneu, uma caixita redonda de banha da cobra com que tratava a pele ardida do muito sol, no fim de pagar a renda das courelas fechava-se o ano sempre no mesmo ponto em que tinha começado, uma miséria aflita, olha hoje um homem para trás e não acredita que um mundo assim já existiu.

O Salazar punha o povo a cantar a casinha portuguesa, mas o pão e o vinho sobre a mesa só existiam na letra da cantiga, não havia casa nenhuma, nem estaria para haver. O país existia para uso duns quantos figurões inchados de prosápia, o resto eram burros de carga, não havia entre a gente e os bichos fundamental diferença, de vida e passadio, quem quisesse fugir à miséria só tinha um rumo a tomar, era procurar uma terra melhor. (Cont.)


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

As Aves 7-6

Gaspar sai finalmente para os jardins. E tanta realidade traz nos olhos, que não lhe sobra espaço para imaginações. Mesmo amputados pela Revolução, parecem estes domínios um reino inteiro, a estender-se para lá do horizonte. Espelhos de água com figuras alegóricas, terraços e escadarias e bosques e alamedas, e jardins da Orangerie onde há plantas de Setúbal, e jogos de água com tritões de bronze, e cascatas e estátuas e fontanas, esta aqui é a de Latona, de quem nasceu Apolo, o do carro do sol. Sentindo-se ultrajada pelas línguas do povo, pediu vingança a Júpiter, que as transformou em rãs. E aqui ficaram elas para toda a eternidade, a coaxar ao vento as suas loas. Lá ao fundo começa o Grand Canal, onde já navegaram barcarolas e se travaram batalhas navais.

É impossível ver tudo. Mas Gaspar não partirá sem ir ao Trianon, onde já houve uma aldeia que um decreto real mandou desaparecer. Ficaram nas colinas dois pequenos palácios, como se mais palácios cá faltassem, e mais jardins à francesa, e um palácio belvedere, e paisagens românticas à moda de Inglaterra. Mas já galopa Gaspar aos casais da rainha, que uns arquitectos andaram a construir, para ela se espairecer dos grandes tédios da corte.

Os casinhotos são de inspiração normanda e têm tectos de colmo, à beira dum riacho. Resta o moinho, o pombal, a quinta e a leitaria, e a choupana da rainha com varandins de madeira. Tão pouco tempo a gozou, a desditosa, que Gaspar se surpreende a lamentar as razões que a história às vezes esconde. Certo rei varreu uma aldeia, mandou fazer um plácio. Deixa o palácio a rainha, volta a construir a aldeia. Não gosta do jogo, o povo, que já tem a vida dura, e corta a cabeça aos dois.E se não houver aqui quem lance a pedra primeira, a última não a lançaremos nós.

Foi tão grande a romaria como o dia, depois duma tal jornada Gaspar não se levantou. De cansaço, se não foi de exaustão, e de emoções, que não esperava tantas. Só ao fim da tarde veio à rua, em busca de um conforto para o estômago agastado. Sobram-lhe dias na escala, já lhe está faltando o ânimo, e mais ainda o dinheiro. Lança mão do telefone que o companheiro deixou. (Cont.)

quarta-feira, 30 de julho de 2025

As Aves 7-5

Cá fora tem à espera um temporal desfeito, oxalá não dure muito. Mas passada assim a tarde em tais companhias, dormiu Gaspar entre sonhos de bem.aventurança e levantou-se cedo. É dia de ir ao palácio do Rei-Sol. O comboio é quente e pontual e cómodo, e Gaspar vai lendo os roteiros do turismo. Ilude alguma apreensão enquanto vê passar o comprido arrabalde, que uns patrícios seus andaram a construir e o céu pesado faz entristecer. Oxalá não venha o tempo estragar o passeio, a oportunidade não se repetirá. E era hoje o dia de partir, que vinha concertado. As finanças estão há muito em contagem minguante, queira Deus não venhamos a amargar este mimo.

Gaspar percorre a pé a avenida de acesso aos domínios do Rei-Sol. Eram há trezentos anos a sede do absolutismo, ficaram a ser-lhe símbolo depois da Revolução. Gaspar preparou-se para a visita, já sabe que, Europa fora, imitações e réplicas lhe atestaram a fama, se mesmo a Portugal chegaram ecos difusos. Mas não sabe ainda que ao percorrer a avenida está pisando o eixo das simetrias do mundo, o tal que passa pelo leito do rei, pelo centro da sua coroa, e divide alamedas e horizontes, e paisagens de lagos e montanhas, e separa em terra os rios, e estrelas no firmamento.

Já deixou para trás instalações secundárias, alojamentos e escolas de valetes, picadeiros e cavalariças, cocheiras e estrebarias, a do escudeiro-mor, a do primeiro-escudeiro. São tão vastas e pomposas que só nelas gastaria o tempo todo, bem se dizia das béstias do rei de França viverem em melhores cómodos que os príncipes da Europa. Gaspar atravessou a praça de armas e cruzou a paliçada, entrou no pátio primeiro, depois no pátio real, estreitando intimidades até ao pátio de mármore, que o não deixaram pisar. No alto da fachada desta prisão de reis ficou paralisado um relógio imponente, desde o exacto minuto em que o senhor do tempo claudicou. E em baixo, a meia altura, o varandim colonado, onde veio apresentar-se o par decapitado, quando o furor do povo o reclamou.

A visita aos interiores tem início na capela, requinte de ouros, e mármores, e rigores neo-clássicos. Depois uma enfiada de salões, palcos públicos do rei, o de Hércules, o da Abundância, os de Vénus e Diana, o de Marte, o de Mercúrio, o de Apolo que teve um trono de prata, e vendo agora este salão da Guerra, é certo que mais à frente acharemos o da Paz. Entre um e outro a Galerie des Glaces, cortada em duas pelo eixo das simetrias, e onde se enfatuavam cortesãos à espera que o rei passasse, às devoções na capela. O fulgor destes cristais, dos ouros, dos alabastros, os tesouros da pintura, das talhas, da estatuária, os lustres e os candelabros, os leques de pavão de Sèvres, os trompe-l'oeil  mentirosos, os festejos de rigor e os bailes de mascarados que a imaginação nos traz, tudo aqui nos ultrapassa a mais fértil fantasia.

Já chegámos aos aposentos da rainha, à alcova das parições reais, ao salão do Grand Couvert, à câmara dos nobres e à dos guardas, e já voltámos às cenas murais, e às madeiras embutidas, e aos tapetes e às sedas e aos brocados.

Vêm agora os privados do rei, um do leito e das insónias, um do conselho de ministros, um das perucas, um dos trajamentos, um das ceias públicas e outro da biblioteca, um do relógio astronómico e das curiosidades, este final é o dos jogos.

Já não cabemos em nós de tanta fascinação e ainda nos falta ver a ópera real, obra toda em madeiras marchetadas, que lhe emprestam a acústica perfeita. Ainda neste firmamento Apolo reina, porque é ele o deus das Artes e da Luz, e muito antes de o rei o ser um dia, foi Apolo o sol primeiro. Um delicado mecanismo levanta a plateia ao rés do palco, e assim se fez aqui muitas vezes o baile, quando melhor lugar se não achou. (Cont.)

terça-feira, 29 de julho de 2025

As Aves 7-4

A terceira tarde não foi uma aventura, era um encontro, sem data, que estava combinado. Um encontro com o mistério, cara a cara. Gaspar foi encontrar-se com a Gioconda, estava ela a receber visitas ao fundo duma sala, a perder-se num sfumato, na vastidão da parede. Ficou-se a observá-la cá de longe, a aventurar-se aos poucos, à medida que fluía a multidão visitante. E quanto mais perto se achava, cercado de outros convivas, mais sozinho e exclusivo lhe parecia aquele encontro. Ficou ali meia hora, de olhar preso.

Gaspar está emocionado, mas não sabe que emoção é esta, nem conhece as palavras de a dizer. Vem-lhe à ideia um verso conhecido, de um perito em tais mistérios, um mover de olhos branco e piedoso. São estas mesmas as cores, e o murmurar dos sons, e este pudor quase físico, e a luz maior a fulgurar no peito, plácida e macia. Vinha ele à procura do mistério e encontrou-se com um abismo. É certo o mover dos olhos, quem fiará, porém, das qualidades.

Mas hoje tem Gaspar o seu dia de fortuna maior, se fortuna é ter à espera a própria Vénus. Encontrou-a Garpar ao fundo de uma nave, exposta num pedestal, fulgurante como aparição, numa auréola de luz. Deslizou-lhe o véu nas ancas, já esquecido. E a face, o peito, o ventre, as coxas, um joelho, abre-se-lhe o corpo inteiro a todas as direcções, numa espiral donde não há evasão. E os braços, que estão em falta, deixam lugar à imaginação. É a carnalidade intemporal, nesta brancura de mármore. Garpar não tem aqui nenhum poeta em seu soorro, nem lhe valeria a pena. Ao pé do fulgor pagão dos velhos gregos, tudo é trivialidade. (Cont.)

segunda-feira, 21 de julho de 2025

As Aves 7-3

Por agora tem Gaspar que atravessar metade da cidade, vencer o dédalo de túneis e passagens, até chegar à rue de la Paix e aos balcões da companhia. Parece desolada a hospedeira, por já ter a lotação completa. Mas pior ficou Gaspar, que viu crescer em dois dias a duração da escala. Marca viagem no avião seguinte e regressa ao hotel a fazer contas.

Três coisas tem Gaspar que administrar, qual das três a mais custosa, o tempo que é por demais, o dinheiro feito pouco, e a sua curiosidade que é bastante. Não vai ser ele o primeiro a cortar em satisfações da boca. E as manhãs hão-de ser as próprias da estação, agrestes e desabridas, como se espera nestas latitudes. Ora um corpo adormecido tem já meio sustento garantido. Seguro da conclusão, passará Gaspar a prolongá-las no duvidoso aconchego dos lençóis.

É às tardes que arrisca uma aventura. A primeira começou no Jeu de Paume, onde foi encontrar o Petit Fifre, um companheiro que lhe ficou da infância, perdido numa página dum livro de francês. Gaspar vai à procura de si próprio, mais que do pequeno tocador de pífaro, e a figura é menos impressiva do que lhe guarda a lembrança. Falta-lhe vigor nas cores e a expressão é singela em demasia, isto é o que sente Gaspar, um tanto decepcionado, em questões de arte não vai além das impressões primeiras. Se por tão fracas razões a obra foi recusada numa exposição do tempo, é o que não explica este catálogo. Mas Garpar já regressou à meninice. E o que ficou a perder nesta figura, por ter esquecido a força da antiga imaginação, foi ganhá-la nos Déchargeurs de charbon, já então os mesmos que hoje são, subindo e descendo as pranchas, de balaios à cabeça, já difusos de neblina e de poeira, a alimentar as fornalhas do mundo.

Na tarde segunda foi à praça da Concórdia, onde a lâmina fatal degolou a vassalagem dos poderes absolutos. Em seu vagar subiu os Champs Elisées até à Place de l,Étoile, e chegou ao arco triunfal onde essa história toda veio desembocar. No caminho entrou numa livraria e não perdeu o seu tempo. Encontrou nela um poema dum tal Prévert, que lhe veio a múltiplos preceitos. O caso é que um soldado, certo dia, trancou o bivaque na gaiola e saiu do quartel de canário na cabeça. O gesto há-de parecer uma heresia, e o mais certo é que o seja. Porém, conforme alegou o pássaro, qualquer um pode andar enganado, e arrepiar um dia o seu caminho. Tivesse o degolado rei, é um exemplo, espíritos mais atentos às falas de certas aves, e outro galo cantaria. Não foi esse o celerado caso, diz a história. Foi-o, porém, felizmente, noutros mais pessoais e recentes, põe-se Gaspar a pensar. Muita coisa diz a arte, sem afirmar coisíssima nenhuma. E Garpar, que o não sabia, tomou aqui a primeira lição.

Já deu ao Arco do Triunfo as voltas do romeiro, que são três, e contou as batalhas todas que sublinha. E viu Almeida, onde o paiol explodiu, e a sangueira misturada na corrente da ponte velha do Côa, e o Rio Seco, e Fuentes e Alba de Tormes, e muitas outras de que nunca ouviu falar. E lembrou-se do Buçaco, e das Linhas de Torres Vedras, e doutras que aqui não vão por não serem vitoriosas. Veio-lhe à ideia a fuga para o Brasil, o governo dos ingleses, o ódio ao jacobino. E concluiu, bem ou mal, que a história de Portugal mais uma vez se enganou.

Viu proclamada a terceira república, e regressada a Alsácia ao pátrio berço, e lembrados os partisans mortos pela honra da França, mal feito fora esquecê-los quando tantos claudicaram, e os soldados da Coreia, e os caídos na Indochina, e na guerrilha da Argélia, da Tunísia e de Marrocos, e de tanto batalhar ficou esta chama acesa a um soldado ignorado, quem sabe se terá vindo duma tribo de além-mar. Foi entre todos quem mais sacrificou, se nem um nome lhe resta. (Cont.)

sexta-feira, 18 de julho de 2025

As Aves 7-2

Não agradam a Gaspar estas considerações. Para lá das respostas que não tem, mais o consomem as perguntas que ficaram por fazer, e agora mesmo faria. Mas foi subindo a agitação no cais com o crescer da manhã, na outra ponta do banco sentou-se um alentado viajante, a pilotar um carro de bagagens. E já Gaspar escapa ao solilóquio, nem vai ficar ali o dia todo, nem lhe convêm estes sinais de quem escuta vozes. Folheia o plano da cidade e desce ao caos do metropolitano, entendamos-lhe nós os miúdos cuidados com que regressa ao ponto de partida, onde deixou à guarda a bagagem escassa.

Esta gare de Austerlitz, onde viemos desembarcar ainda a manhã não rompia, é um vastíssimo galpão feito de ferro e amplidões de vidro, povoado de muitas aflições. Pedaço do meu país já lhe chamou um poeta lusitano, se fosse além do mar era uma colónia nova, agora que outras não há. Nos últimos quinze anos desembarcou neste cais um milhão de portugueses. E se piores tribulações lhes não faltassem, aqui mesmo lhes extorquiam as últimas moedas alguns compatriotas traficantes, que acenavam aos pobres com trabalho nas obras e prometiam um barraco onde estender o corpo. Outra coisa não procuravam eles. E assim veio um certo Zeca, é um simples exemplo, a partilhar a cama durante quatro anos com mais três camaradas, dois aos pés, dois à cabeça. Que onde houver gado, o mais certo é haver mercado, e comércio melhor não se arranjou.

No que já leva de vida, Gaspar nunca foi homem de grandes viagens, além das aventuras que a pátria lhe pediu, e algumas que ensaiou de mote próprio. No país ensimesmado que o seu foi, nem viagens verdadeiras eram recomendadas, nem lhas consentiriam apertos de orçamento. Mas vencido o desamparo que atrás vimos, não lhe estranhemos a curiosidade, se não é impaciência, em sair por essas ruas, a ver se corresponde esta cidade-luz às imagens que foi fazendo dela, e às famas que a acompanham desde há muito. Traz feitas as contas para uma espera de três dias, ao quarto há-de apanhar no Bourget um avião que o levará. E é este espírito inquieto que abandona a estação, finalmente pode ver com os próprios olhos muitas coisas de que mal ouviu falar.

Viajar é aprender, não é só perder países, como sugerem poetas. Por isso vai Gaspar compenetrado, de olhos abertos a toda a novidade, são as cores e fachadas de edifícios,vibrações que andam no ar, a harmonia dos lugares, a feição que leva a gente no semblante. Quantas vezes basta um nada para definir um modo inteiro de viver. É o caso da sexagenária que passa o dia atrás do seu balcão, nos banhos públicos desta pequena praça. Por um par de moedas cede apetrechos de banho a quem de seu não tem maiores comodidades, como estes dois clientes africanos, agora mesmo travados de razões. Mas logo ela lhes levanta a voz, de cenho impetuoso e urgente, il fault être poli, quand on est en France! E não sendo o doesto uma decretal do Rei.Sol, foi ele de tal modo exemplar que logo se aplacaram os desavindos contendores.

Gaspar não vem acostumado a estas cidadanias, por este pouco fica em sobressalto. Segue atento às indicações da carta, por deformação antiga, enquanto busca um hotel de orçamento adequado. A bolsa do viajante é o fiel desta balança. E acaba por se instalar no hôtel des deux armées, se algum psicólogo explicaria o gesto, veremos o que a noite nos reserva. (Cont.)

segunda-feira, 14 de julho de 2025

As Aves 7-1

E agora, meu herói?! Uma a uma fomos perdendo as amarras, a última partiu neste comboio que já partiu para norte e nos deixou sozinhos. Abraçaste o companheiro à pressa, guardaste o guia da cidade em que não tinhas pensado e te vai fazer falta, meteste no bolso um telefone obscuro, para algum acaso imprevisto. Agora aí sentado nesse banco, perdido o olhar no cais por onde passam vultos indiferentes, não sabes bem o que fazer de ti.

Entraste na luta pela liberdade, por teres sonhado que a liberdade é para todos.Tu, que nunca viveste em liberdade, nem sabes que ela ou se recebe já pronta, como um dote, ou será fruto de aprendizagem dura. Cedo te caiu em cima a férula paterna, descomedida e cega, ainda a levas às costas sem que o saibas. Passaste pela mão dos padres, no tempo em que a tua essência era uma tábua rasa, uma intocada tela onde podia inscrever-se o mundo inteiro, qualquer rascunho do génio, qualquer borrão da vulgaridade. E acabaste submetido à rudeza militar, ao espartilho pouco racional dos códigos de papel. Aprendeste a ser submisso, timorato, cumpridor, a ter respeitos humanos, a tomar em boa conta o pensamento dos outros. Não sabes que a liberdade é um rasgão original, é escolher alguma rota numa encruzilhada e não tirar dela os olhos. O resto é sofrimento e solidão. Por isso estás aqui de mãos desamparadas, vieste parar aqui e já vacilas, não sabes de que te serve a liberdade.

E ainda te vai no adro a procissão. Que farás quando vieres a descobrir que a febre que te moveu, e tomaste por verdade indiscutível, nunca passou a fronteira do sonho? Que vais tu fazer ao dar-te conta de que o teu país voltou à embriaguez antiga, dos milagres trazidos pelo vento que há-de chegar da Europa? À mesma corrompida cupidez, à rudíssima e torpe ignorância, à mesma fidalguia de fachada, à fatal temeridade? Que farás ao observar, após tanto sobressalto, que Portugal adormeceu de novo, num sono ainda mais profundo? E vindo tu a saber que aquela voz, a mesma voz que te arrancou do sono numa manhã de há três mases, logo fez da tua cama o seu quartel-general mal deste costas, que farás? Não conheces o mito de Anteu, se eu to contasse agora não acreditavas nele. Nem aceitavas que assim é a condição humana, antes de vir um Hércules qualquer levantá-la do chão. E quando fizeres um dia, ao contrário, esta viagem, e fores realmente proletário, sem casa, sem trabalho,sem família, que farás tu, meu herói? Verdade é que, por uma vez, ousaste agir. Esse pouco, e algum ignoto deus, te hão-de salvar, se a salvação te basta. (Cont.)

quinta-feira, 12 de junho de 2025

As Aves 6-9

E sobre o mais continua Portugal a arder, é sul e é norte, razão tinha o monsenhor. Será deles a culpa, centenas de sedes comunistas são incendiadas por todo o país, em Famalicão cai o primeiro morto, algumas dúzias mais hão-de cair. Rebentam bombas em Pinhel, nas ilhas, em Lisboa há carros destruídos, casas, instalações, de todas a maior bomba é roubarem os bombistas o tesouro de Santa Maria da Oliveira, será tudo para glória de Deus. Os mutilados do império cercaram a assembleia de São Bento, este largo é uma floresta de muletas e de pernas de pau, aqui se tornam máquinas de guerra as cadeiras de rodas, tanto tempo escondidas, faça-lhe a conta quem dúvidas tiver. O Secretariado Nacional Provisório pró-Conselhos Revolucionários de Trabalhadores Soldados e Marinheiros apela à dissolução da Constituinte, e alguma voz promete, o nosso Outubro chegará também. Chega não chega, pedem os operários desta fábrica têxtil o regresso do patrão, e o general do olho de vidro ameaça atacar o Alentejo dentro de três semanas. A norte e a sul colunas de estrangeiros garroteiam Angola, e cinco mil cubanos aguentam Luanda a poder de metralha. A popa do império afunda-se no mar como um Titanic, Dili está a ser arrasada, e o governador de Timor pede a Lisboa médicos, enfermeiros e remédios, em desespero pede a Lisboa os meios que nunca virão, para salvaguardar as próprias tropas. Trinta mil manifestantes assaltam cinquenta autocarros da Carris e rumam à Trafaria, a libertar dois soldados presos. Meio milhão de punhos erguidos encurralam em São Bento deputados e governo, são operários da construcção civil que vieram de longe à procura dum czar, à procura dum palácio de inverno, mas já vão desistindo porque nem um nem outro acharam, e é um Aljube novo que aqui foi ensaiado, para alguém há-de servir. A Renascença é dinamitada por ordem superior, o governo suspende actividades por falta de condições, Carlucci já reuniu um grupo de militares e partiu para a América, os dados estão lançados. (Cont.)

quarta-feira, 11 de junho de 2025

As Aves 6-8

Técnicos soviéticos trabalham num veículo capaz de rodar a mil e duzentos quilómetros por hora, não descansam enquanto não vencerem o recorde americano de velocidade em terra, e assim já não terão demora no caminho as mães da Rússia que viajam entre a praça Pushkin e o mausoléu de Lenine. A ilha de São Tomé festeja o levantamento de Fevereiro de cinquenta e três, o tal que terminou com centenas de negros mortos, no cais do Pidjiguiti foi em cinquenta e nove. Trinta mil camponeses sem trabalho ocupam terras incultas da Casa do Cadaval, e do latifúndio de Alcácer, e da herdade da Chaminé. Os comunistas são expulsos das ilhas do Atlântico, ao pontapé, à bomba, que estes são domínios predilectos da América e a América não dorme. Uma estátua de bronze apareceu esta manhã decapitada e Santa Comba Dão, e cinquenta polícias, que estavam barricados nesta esquadra de Setúbal, são evacuados para Lisboa em carros de assalto. O general do olho de vidro busca refúgio em Talavera la Real, depois do ataque aéreo a um quartel de Lisboa.

Devido à situação difícil em que se encontra o jardim zoológico, os ursos atingiram um estado de magreza considerado anormal. Há ainda três milhões de analfabetos, de homens aqui falamos, não dos ursos, se a uns e outros alguma coisa valerá a esforçada pertinácia das brigadas da juventude em Chaves. No Porto, entre estudantes, estão hoje Beauvoir, e Sartre, e Foucault, e esta foi a assembleia mais muda, se não a mais ignorante, que alguma vez encontrei. A morte do homem e a ideologia capitalista são o tema da noite, as ocupações e a autogestão as soluções para o mundo, e as eleições que aí estão uma ratoeira para idiotas.

Os últimos americanos fogem da hecatombe de Saigão, e os camponeses de Alcoentre ocupam o maior latifúndio a norte do Tejo, não sem razão lhe chamam Torrebela. É um condado de oito mil hectares, jóia primeira da casa de Lafões, que de outras dispõe na Azambuja, na Golegã, em Angola e na ilha de São Tomé, nem todos afinal se queixarão do tal funesto império. Só este paço é um labirinto, que entre salões e quartos privados contamos nós cinquenta, é nosso quanto desta janela a vista alcança, o próprio horizonte nos pertence, vedado em redor por aquela muralha da China.

A Torrebela senhoriou durante séculos duas freguesias que lhe cabem lá dentro, em vida do senhor duque dava pão em troca de suor, ressalvados os dias do ano, frequentes de ver, em que um homem se via rejeitado pelo capataz na praça da jorna. Só bois de trabalho eram cinquenta juntas, veja a força que ali estava, sem contar agora os gados miúdos que amalhavam em estábulos e currais. Por estas máquinas a desfazer-se em ferrugem, por estas forquilhas, e charruas, e malhos, e ancinhos, e serrões, e apeiros, e cagas a apodrecer por aí em telheiros e arribanas, por estes petrechos e armamentos de abegão e maioral, por aí se pode ver a riqueza que isto não era. A ruína e a fome vieram depois que o velho duque faleceu. Desavindos os herdeiros, deixou de haver amanho das culturas, é tudo por aí uma praga de eucaliptos, no lugar dos gados só se topam gazelas, e corças, e veados, a pastar por onde calha. De forma que fizemos uma reunião e mandámos vir as Forças Armadas, esteve cá um capitão e outros da cavalaria, onde nos disseram que ninguém pode ficar à espera que saia a lei para ocupar as terras. Primeiro ocupa-se a terra, a lei virá um dia, na revolução é assim.

Mas é penosa, esta revolução.Que o digam as velhas camponesas de Maçussa, mal entram nos aposentos da duquesa e logo as rudes vozes se tornam balbucio, parece que violaram o santo dos santos e rasgaram o véu que preservava Deus. Têm nos olhos uma estranha culpa, será isto o pecado original, e os quebrantados membros a custo sujeitam baús e gavetões. Penduram ao peito vestes a atavios, miram-se no cristal do espelho, é isto um baile de mascarados a jogar ao sisudo, riem só quando um maltês vem da capela, de batina e sobrepeliz, a distribuir à mão absolvições gerais. Mas já entrou um maioral zabgado que expulsa toda a gente, o baile terminou.

A proa do império afunda-se no mar como um Titanic, Angola está a ferro e fogo, há guerras e mortandades por todo o território. Estes são os tempos terminais, já anda à solta a besta monstruosa, brancos e negros largam terras e haveres, empilham-se aos milhares nos cais, a ver se escapam aos fogos cruzados, aos ódios, às traições. Se não há porto de embarque fogem num desvario, para o sertão, para o nada, assim visto de cima parece aquilo uma serpente de lata a arrastar-se na areia e são afinal cinquenta quilómetros de jipes, furgonetas, camiões, limusinas, caravanas, tractores e catrapilas carregados de gente, carregados de mobílias coxas, carregados de sobas de pau preto e edredões de gazelas, e esta é a picada que nos há-de levar à fronteira das terras do fimdo mundo. Somos dez mil e havemos de chegar. Virão dilúvios de água e tórridos calores, os pés hão-de lavrar nos lamaçais dos rios, morder-nos-ão no rosto as madrugadas álgidas e havemos de chegar, porque nenhuma história fica suspensa a meio, ninguém pode torcer as leis do mundo. Quem saiu entrará, regressará um dia tudo quanto partiu. (Cont.)


segunda-feira, 2 de junho de 2025

As Aves 6-7

Consta que há membros do congresso americano chocados com a revelação de que a CIA interferiu na política interna do Chile, estes são assim, chegam tarde mas vêm sempre. O que não dizem, por enquanto, é que a CIA  financiou quarenta e cincodias de greve dos camionistas chilenos, e pagou a provocadores, e organizou a manifestação das panelas vazias, e armou os assassinos de Pratts na Argentina, e de Lettelier na América, um dia di-lo-ão, quando já ninguém precisar de o saber.

Pois quem espera desespera, que o digam estas oitenta família dos campos de Loures, à espera duma casa desde as cheias de mil novecentos e sessenta e sete, só hoje ficamos a saber que morreram então quinhentas pessoas na região de Lisboa, não costumamos ouvir a BBC, é pena. À espera está também uma boa metade da população portuguesa, pois sendo numa casa, ou num singelo pardieiro, vive sem energia eléctrica, bem se diz nesta conferência da FAO, em Roma, que a subnutrição, ou simples fome, e o baixo rendimento, colocam Portugal entre os países menos desenvolvidos. Não vamos mais longe, acompanhemos ao Sintrão estas equipas duma brigada militar que está a rasgar uma estrada, e logo veremos que não há diferença entre isto e um qualquer lugar dos fins do mundo. No Sintrão não há torneiras de água, nem lâmpadas de luz, muito menos uma rede de esgotos, que escorrem a céu amplo pela rua, e ajudam a curtir os estrumes de inverno. A estrada antiga é um simples caminho de terra, uma picada do mato por onde as crianças vão à escola a Castaíde, três quilómetros para lá deste monte, que bem lhes faz o arzinho das manhãs. Pior estão, sem se queixar, os mortos, que têm de palmilhar uns bons cinco quilómetros, até acharem sossego final no campo santo de Rio de Moinhos. Na sua maioria analfabetos, não estão melhor os vivos que sobraram, todos velhos, quem tinha dez reis de alento fugiu para a emigração. Um dia o povo do Sintrão juntou economias e fez uma capela, o padre, porém, não aceita frequentá-la, por causa da porta, que não está de arco. E não há volta que se lhe possa dar. Não a deu a Senhora de Fátima nem a darão os pobres militares, santos de pau de amieiro que toda a gente invoca, nestes tempos. Nem com estradas novas, nem com redes eléctricas e pontões sobre as ribeiras, nem com palavras de cidadania, que estas campanhas são pagas pelos comunistas, os tais que virão atrás para nos roubar as hortas, não tarda nada e serão destruídos todos os cartazes que animam as tristes paredes.

O embaixador Carlucci, que oficiou no Chile, declara que a CIA não está em Portugal, não nos preocupemos, só ele basta. Anda em viagem discreta pelo norte, enquanto liberta empréstimos em dólares, já percebeu que está nos socialistas o cavalo em que apostar nesta contenda, e assim mata dois coelhos com o mesmo cajado. Dum único passo encurrala os comunistas, que são o mal supremo, e livra do pesadelo a América profunda. E já esfrega, de contente, as mãos, metade do apís está a ferro e fogo, o estudantil e o outro, há mobilização geral de matracas, barras de ferro, correntes de bicicleta. Há greves nas escolas de Lisboa, de Almada, da Covilhã, de Bragança, de Abrantes, de Chaves, do Porto, de São João da Madeira, de Santarém, de Viseu, do Barreiro. O ministro da educação já cedeu o lugar a um major da tropa, demitido a seu tempo por ter casado com uma espanhola sem autorização superior. Foi-se o ministro porque uns tantos tudo pretendem demolir e levar ao caos, porque o trabalho e o saber são hoje em dia valores burgueses, porque ao fim de quarenta e cinco anos de opressão exigem tdo agora, e já, e aqui.

Aqui também se pode ver o estado a que chegámos todos. Sobem estas mulheres o parque Eduardo VII, são feministas em guerra, e vão fazer o auto-de-fé dos símbolos da vassalagem ao macho, dois corpetes, um avental, brinquedos das meninas, revistas pornográficas. Em boa verdade, não escasseando aos homens estandartes de luta, menos carecem estas mulheres de bandeiras e pendões. Mas já milhres de basbaques ocupam lugar no relvado, à espera de entrever a maminha descuidada, nem todos os dias nos trazem a emoção radical dum espartilho a arder. E em  breve se acham estas mulheres no meio duma massa que as empurra, e as agride, e lhes levanta as saias, e lhes molesta as carnes íntimas. É isto um delírio de barbárie indescritível, tão funda como um instinto negro que chega da origens dos tempos, há mulheres arrastadas para as poças de lama, e homens de carcela aberta exibindo falos tumefactos, maior que esta amargura só a vergonha de não ter nascido cão. (Cont.)

domingo, 25 de maio de 2025

As Aves 6-6

Vêm notícias de mulheres do Chile sujeitas a torturas brutais, com cabelos rapados, com seios retalhados, com violações repetidas, com órgãos genitais destruídos por choques eléctricos, por ratos, por aranhas. O bispo do Porto afirmou que os objectivos dos militares coincidem com os fins da igreja, mas os católicos de Braga estão em guerra civil por causa dum cónego, e a serem tão iguais os fins, só pode estar nos meios a questão. Registados foram trezentos casos de cólera em todo o país, até ao fim do ano virão mais dois mil, searas ardem por todo o Alentejo, em Selmes, em Vale de Vargo, em Ouguela, em Bensafrim, e se não ardem searas são as espigas que dobram, maduras, até ao chão, sem que a ceifa seja mandada fazer, quem há-de entender esta traição, bem vão os trabalhadores desta companhia de electricidade, que oferecem um dia de salário para a salvação da nação. Mas Portugal é um náufrago exangue, e traz atada ao pescoço uma mó de moinho remotíssima, por isso se demite este primeiro-ministro, por causa do problema colonial, por causa do problema económico, por causa do problema das novas formas de escravidão que aí vêm.

Extremistas brancos lançaram em Luanda o fósforo primeiro, outros se seguirão, espalhados na areia ficam mais de cem mortos, no Precol, na Cuca, no Cazenga, e outros tantos nas cidades do Índico, que saem a arder dos acordos de Lusaca. Por sobre o mais, oitenta países reconheceram já a independência de Madina do Boé. Pelos bairros africanos só se ouve o martelar de caixões e contentores, é um estranho batuque este dos brancos, que viraram mestres carpinteiros a arrecadar mobílias, a arrecadar peles de zebra e bustos de marfim, a arrecadar tapetes de leões. Aviões e navios deixam a África atulhados de gente, a abarrotar de camionetas e de lágrimas, a abarrotar de paisagens perdidas, e de caixotes de amargura e ódio.

Arde o Pinhal do Rei pela primeira vez. Quiçá para vencer o medo, estes meninos da associação juvenil montaram guarda ao Matagal dos Medos. Brigadas universitárias do Porto combatem em Chaves o analfabetismo, e a miserável situação social e sanitária em que vive o nosso povo. Em Nisa, por baixo desta janela, uma mão que logo se esconde deixa o aviso, a negro, os comunistas roubam os filhos às mães aos sete anos. Por lhe parecer fraca a façanha, e antes que possa um homem recobrar do íntimo calafrio, logo redobra o alerta naquele pano de branca parede, os comunistas matam os velhos inúteis com uma injecção atrás da orelha.

Há novo incêndio no Pinhal do Rei, enquanto ardem as matas da Lousã, da Amora, de Santa Luzia em Viana, de Pombal, bem avisado andará este monsenhor que leva a paróquia de excursão a Fátima, e à vista dos fumos de Poiares não tem hesitações, os comunistas é que põem este país a arder. Verdade ou mentira, é fogo posto o que lavra no palácio da Ajuda, ardem à beira do Tejo quinhentas obras de arte que falavam de reis antigos. Por sabotagem descarrila um comboio na Beira Alta, coros e danças da marinha soviética enchem o coliseu de Lisboa, e Moscovo compra dois milhóes de toneladas de trigo ameticano.

No Kebo são trocados sete prisioneiros portugueses por trinta e quatro africanos, não está mal este câmbio, pensamos nós, por não sabermos que só este Maltês conta por sete. Há três anos foi capturado numa emboscada, por lá o arrastaram até chegar à prisão, para lá da fronteira, na cabeça levava estilhaços avulsos de granada. Puseram-lhe o nome na lista dos mortos, e nesta aldeia da Maia todos acreditam porque viram o caixão, um pelotão de artilharia veio do Porto e trouxe para o cemitério os seus restos mortais. Disseram-lhe uma missa por alma, escreveram-lhe o nome por cima duma campa, esqueceram-se dele. E agora ele vai chegar, trocado por sete negros, traz uma sombra espessa e real atrás de si, alguém vai ter que obrar aqui um novo milagre da ressurreição. É ele próprio quem mete mãos à terra, ergue lá do fundo os restos dumas tábuas, estão três pedras lá dentro.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

As Aves 6-5

Isso mesmo é o que acontece a Portugal, tolhido em solidão, orgulhosamente só. O mundo riscara-nos do mapa, agências difundiam a espaços mais uma condenação da Onu, abstenção da América por causa dos Açores, votos contrários das falanges de Madrid, dum Brasil comprometido às vezes, dos africânderes do Cabo, se a isso eram chamados. E de repente a revolução soltou rumores na imprensa inteira, não há dia em que não se fale de nós por esse mundo, este jornal católico francês adverte que o pequeno Portugal se arrisca a ter de pagar, por muito tempo, a política anacrónica dos antigos dirigentes, olha a novidade, e estoutro, comunista, lembra que o inventário dos longos anos da ditadura é catastrófico, a quem o dizem eles. Perante a incerteza das tendências, um trabalhista escandinavo sustenta, liminar, no estado terminal em que o país se achava, qualquer leve mudança só pode ser para melhor.

Por não ter sabido a tempo de tão fausta novidade, suicidou-se em casa, no Porto, o carcereiro da Pide, logo esse que tanta história nos podia contar. E, por causa das persistentes dúvidas, arrisca João Padeiro um anúncio no jornal, a proclamar que nunca foi denunciante nem informador. Quem dúvidas não tem, nem padece de hesitações, são estes pescadores da Afurada, a julgar pelo arrebato com que arreiam no largo um busto de almirante, a mando de quem vão traineiras e marés e gentes da pesca em geral. Atam-lhe uma bóia ao pescoço e lançam-no ao rio, é uma geral risota, lá vai o manipanso a caminho da foz, a simples cabeça escura espadanando à flor da rebentação, vai-se travar aqui a última batalha contra o mar tenebroso. Aproveitemos nós para tirar a limpo a remota questão, quem foi que sujeitou Marte, a quem irá Neptuno obedecer.

Vai um frenesi por esta terra, pela pressa se vê que chegamos atrasados à história, só partidos políticos são já cinquenta. Toda a gente quer um sindicato, são os artistas plásticos, os cartonageiros, os administrativos do ensino, a construção civil, os ferroviários, os funcionários públicos, os magistrados, os serviços sociais, a marinha mercante e os cerâmicos,os estivadores e os hoteleiros, as prostitutas e os enfermeiros do Porto, os pescadores do arrasto, os médicos e os mármores e os motoristas, os metalúrgicos de Setúbal, os jardineiros e os farmacêuticos, os caixeiros, os profissionais de informática, e aqui só os padres estariam em falta, se há muito não estivessem já servidos.

A vida deste povo é um antiquíssimo estendal de queixas, Lisboa não tem pão nem transportes, os correios estão paralisados, é um corropio de saneamentos nas universidades, nas autarquias, nos hospitais, nas administrações, já avisam os comunistas que a impaciência gera amargos de boca, fala quem muito teve que aprender, são cinquenta anos de guerra contra uma armadura de ferro. Mas bem prega frei Tomás, que já nesta empresa são ocupadas as instalações, em face da traição reformista é necessária uma aliança revolucionária em que a classe operária se organize autonomamente formando os seus comités políticos e os seus sovietes, onde terão eles ouvido a lenga-lenga, já em Direito se está marchando em frente pelo controle estudantil da escola capitalista, já os meninos do Pedro Nunes entraram em greve até à abolição dos exames, já na Renascença avançámos para a autogestão contra a padralhada reaccionária, já em Letras se exige a passagem administrativa em todas as cadeiras, lá vamos, cantando e rindo.

No porto de Lourenço Marques três mil estivadores entram em greve, está paralisado o caminho de ferro de Benguela, grevistas são treze mil, aumentam os ataques aos quartéis na Guiné, Buruntuma é desactivada, afinal nem tudo vai melhor com Coca-Cola Grande, por isso a guarnição de Jamberem deixa para trás o posto fronteiriço e vai asilar no quartel de Cacine. O império africano é um caldeirão fervente, é um grito do Ipiranga há muito sufocado, e que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões, se é da liberdade que estamos a falar, nem mais um soldado para as colónias. Os comunistas advertem que o povo deve repelir os demagogos e aventureiros da esquerda, trezentos mil exemplares do Eça logo se esgotaram em Moscovo e um grupo do teatro Bolschoi vem a Lisboa, mas Sakharov protesta com uma greve da fome, mas Rostropovich está exilado em Londres, mas Barischnikov deserta no Canadá, esta bailarina do Kirov é impedida de se juntar ao marido que está na América, e um general de olho de vidro está clamando que o povo não deve deixar-se iludir por novos ditadores. (Cont.)

quinta-feira, 15 de maio de 2025

As Aves 6-4

Tanta lida para tão pouca vida, é caso para dizer. Anda uma enlevada princesinha a preparar-se durante meses, a cumprir as difíceis provas da mocidade portuguesa, a picar os dedinhos no bastidor, a passajar buracos numas meias de homem, indistinto ainda mas pairando já no horizonte, Deus saberá se fadário ou estrela da manhã, a batalhar com uns vincos de camisa até não resistir nenhum, a apurar os segredos do refogado e da restante culinária, se se diz  que passa por aí o caminho do coração dos homens, a esmerar-se nas artes da vassoura, a esticar como convém a dobra do lençol, a cuidar de vestir os culotes do avesso, não vá uma costura estouvanada, por simples relaxamento que a pouca idade explica, roçar-se onde não deve e acordar o que dormindo está, a provar pelas cores da casula que vai sempre à missa das dez ao domingo, e tudo isto na presença dum secretário de estado, e dum director-geral, e do apuradíssimo dedo de avulsas individualidades. Anda ela nisto e tudo é vão labor, pois nenhum destes príncipes há-de vir requestá-la, de sapatinho na mão, se mortos jazem todos, já frios, no plaino abandonado, não há brisa que os possa aquecer. E sobre o mais, a atentar no caminho que as coisas levam, em breve há-de vir a história arrancar-lhe a coroa e destroná-la, e devolver esta cinderela à mais anónima vulgaridade.

Em breve chega também a segunda edição do jornal, da maior actualidade e sem vistos da censura, a acreditar nos brados do rapazito ardina. Houve tiroteio na sede da Pide, quatro mortos ficaram na calçada. Enquanto à pressa queimavam papéis, alguns esbirros acolheram com balas o clamor dos populares. Cada um faz na vida o que melhor quadra à sua especialidade, que às vezes nada é, como se vê nesta sessão de quinze minutos da Assembleia Nacional, trinta e nove deputados responderam à chamada do senhor presidente, nada acho de melhor para dizer nesta hora a vossas excelências do que recordar-lhes uma frase eterna, dita noutra terra e noutras circunstâncias, muita gente espera de nós que cumpramos o nosso dever.

Cumpriram todos, que desandaram de vez, e muito melhor cumpriu o povo. Nas ruas não cessam os abraços e paparicos aos soldados, é uma preia-mar de emoções, cai-nos do céu este pão e este conduto, ele é presuntos e queijos e fiambres que ninguém sabe donde vêm, ele é garrafas de leite e outras mais graduadas poções, há vinte e quatro horas que estamos sem comer, nem para arranchar nos sobra tempo. Começam a sair os presos dos curros de Peniche, das celas de Caxias, homens maduros a oscilar entre o grito e a lágrima, perdidos de júbilo nos braços dos amigos, vivo na clandestinidade desde mil novecentose quarenta e sete, o melhor de trinta anos, isto afirma um homem de barba espessa, um dos que ajudou a comandar o avião libertário dos folhetos de Helena, de quem já se falou.

Do estrangeiro vão chegando homens do pensamento, mestres demitidos das universidades, políticos exilados há décadas, só este ancião que agora regressa viveu quarenta e sete anos no Brasil, ele é Sertório que passou dezasseis em Argel, e Ayala doze em Marrocos, e Miguel dezassete ma Venezuela, e Santos e Manuel também dez em Argel, a Gomes couberam dezasseis no Brasil, não tem fim este rol de almas pelo mundo em pedaços repartidas, só neste avião da liberdade chegam duma vez quarenta e duas. Desembarcam dos comboios jovens cantores proibidos, refractários da tropa que eram cem mil por ano, na verdade, é o que diz o reclame, são as chinchilas quem se dá bem na nossa terra, enquanto não vierem a saber o que no fim do caminho as espera. (Cont.)

quinta-feira, 10 de abril de 2025

As Aves 6-3

À medida que os tanques ocupavam a cidade, seguiam-nos multidões eufóricas que enchiam de ruído largos e pracetas. Era a hora do ranger de dentes que chegava. Já rasga este ministro as temerosas vestes, já outro arranca os cabelos às punhadas, não poucos ameaçam desfazer-se em prantos, um por falência de ânimo, outro por sobrecargas de consciência, todos por contrição tardia. Mas o ministro da guerra acaba por achar uma saída, neste compasso extremo incumbe-lhe o mandato, mais que a ninguém. Avance este ordenança de picareta em punho, logo ao fundo do túnel nos aguardam as luzes do ministério da marinha, saímos o portão do arsenal como simples paisanos, gritamos um viva ao reviralho indispensável sendo, ninguém dará por nós.

E assim foi, que estes soldados trazem a redenção, não são jacobinos cortadores de cabeças. Ninguém dará por eles, como ninguém deu pelas notícias primeiras dos jornais, são as de ontem e do costume, se traziam alguma actualidade logo ali a perderam, os próprios ardinas calaram o pregão.Há-de, porém, ser verdade, se quem o diz é o jornal de maior circulação em Portugal, uma multidão de excelências esteve a inscrever-se no livro de cumprimentos ao Chefe do Estado, que é a excelência máxima, por acaso moramos no mesmo bairro mas não andamos tu-cá tu-lá todos os dias, era o que mais faltava, ninguém nos levava a sério, daí usarmos destas cortesias para nos declarar veneradores e atentos, e mais que tudo obrigados, e foram elas a excelência Costa, presidente da Câmara Corporativa, e a excelência Baptista, ministro do Interior, e a excelência Santos, procurador geral da República, e a excelência Marchueta, governador civil de Lisboa, e a excelência Sebastião, presidente do município da capital, e a excelência Rosas, governador do banco que manda cunhar os dinheiros do império, e a excelência Medina que é embaixador, e ainda as excelências Pinto e Rebelo que não se sabe o que são, e, se mais alguém veio cumprimentar o venerando Chefe do Estado e aqui não é designado, é do repórter a culpa, por não ter reparado em tudo quanto havia que ver, ou de quem lhe censurou a peça, por ter ele visto mais do que devia.

E no paraíso terrestre dum milionário do estanho, por entre centenas de convidados da melhor sociedade internacional, conviveram durante oito dias sete barões, seis condes, cinco princesas, quatro lordes, três duques com as respectivas duquesas, finalmente um rei e uma rainha, e a famosa begun Aga Kahn. Tão ilustre e luzida comitiva é que vinha a calhar a esta mulher, sentada ali sozinha no banco dos réus do terceiro juízo criminal da Boa-Hora. Tem trinta anos e acaba de ser detida na cidade do Porto, onde levava há doze uma vida de trabalho pacato, com falsa identidade. Um dia já distante agarrou nos comandos do avião da TAP que vinha de Casablanca, e andou pelas cidades do país a distribuir panfletos, há trezentos anos era o canto do cego a chorar pelas feiras a Índia que se afogava, hoje requerem-se outras técnicas, o destino é parecido. E foi assim que choveram panfletos em Beja, em Faro, no Barreiro, em Lisboa, não se pense que os tanques arrancam dos quartéis por ter passado mal a noite um capitão. Chama-se Helena esta mulher, que volta finalmente ao nome que lhe incumbe, e vai ser condenada aos curros do Aljube, se nenhum milagre vier a acontecer. Por pouco iludia até ao fim os troianos da Pide, e agora descobre toda a razão que tinha, ao predizer que a derradeira e final salvação havia de ser um oportuno levantamento militar.

De militares quem sabe é o Serviço de Informação Pública das Forças Armadas, morreram em combate o primeiro cabo Fernandes,de Paço de Arcos, o segundo-sargento paraquedista Tomé Costa, de Bubaque, concelho dos Bijagós, este provavelmente negro, e um capitão do Alvendre, para quem não souber uma aldeia a três quilómetros da Guarda, já teve um castro e um castelo e agora não tem nem um nem outro, que o primeiro foi derrubado há muito e o segundo foi destruído agora, e mais dois soldados, o Gaspar de Valongo e o Correia de Cinfães, o primeiro cabo Castro, que não era de pedra, como o outro, e veio de Guimarães, e o furriel Melo, este da Vila da Feira.

Alguns deles seriam homens casados, é o natural da vida, se tinham filhos quem vai agora pôr os olhos neles, incómoda questão que nos fica em aberto, não sabemos responder. O mais certo, porém, é ser a maioria gente solteira e descomprometida, jovens que mal tinham começado vida, reparemos nas fracas patentes de quem ainda não passou da flor da juventude. Pois forte razão havia para todos se manterem nesta ocasião bem vivos e atentos, a oportunidade não se repetirá, acaba de ser proclamada a rapariga ideal deste ano, tem desassete vicejantes anos, é no Porto que vive e chama-se Ana Paula. Anda um homem à procura a vida inteira, tantas vezes se engana, e se repete, e mulher a gosto nem vê-la, e agora tínhamos aqui toda a papinha feita, salvo seja, a rapariga ideal nestes exactos termos, porque os testes não mentem, muito menos ia agora enganar-se o olho clínico do júri. (Cont.)

quarta-feira, 2 de abril de 2025

As Aves 6-2

O povo de Cacilhas começou a descer o portaló dos barcos que atravessam o rio, e tropeçou nos soldados que faziam guarda às esquinas da praça, não é que viesse a despropósito uma revolta da tropa, importa é saber a mando de quem estes vão e com que fins, quem terá ouvido aqui alguma inconfidência é o rei de bronze que está ali de vigília no meio do terreiro. Mas tudo isto são manobras de populacho republicano, delas se precata el-rei, indiferente e alheio a esta disputa, tanto precisávamos nós de o saber e ficamos na mesma.

Vem descendo a avenida esta mulher, traz encostado ao peito um ramalhão de cravos, parece que vai engalanada para a festa, e ainda não sabe que a uma festa se dirige. É dia de aniversário na casa onde trabalha, razão de tão generosa provisão de flores, modo maior de coroar a fidelidade dos clientes. Mas desde manhã cedo se estão ouvindo na rádio velhas cantigas há muito proibidas, do Zeca Afonso e outros, ou dormem hoje os censores ou alguma coisa aqui aconteceu, entre boatos e rumores toda a gente anda num alvoroço, e mais que todos o patrão timorato, fechou o restaurante e mandou para casa os empregados, escusadas são as flores. Ao chegar ao Rossio encontra a mulher os primeiros soldados, simpáticos parecem, se não é justo dizer que mais parecem civis, em cima do camião da tropa. Um deles pediu-lhe um cigarro, num gesto que há-de considerar-se peregrino, visto o tempo e as circunstâncias, ofereceu ela um cravo vermelho, era o que tinha. O soldado engrinaldou-o na boca da espingarda, por um momento olhou a obra e achou que estava bem, porque sorriu. A mulher viu-se tomada por um contentamento que não sabe explicar. Deu o seu gesto em repetir-se, sem o saber tinha baptizado a revolução. E soltara, entre o povo e a tropa, uma conivência de que ninguém tinha memória.

Também Geneviève guarda lembranças da revolução mas ruas de Paris, em 68, delas nos está dando entusiasmada conta. Gabriel vai ouvindo e acaba a sorrir, discretamente. Lembro-me bem, concede ele, o mundo viu como se esgotou nas bombas a vossa gasolina que ninguém distribuía, por isso andou a pé nos bulevares muita gente que não tinha melhor pretexto para o fazer. O mundo viu as vossas duquesas, podres de chiques, a distribuir boquinhas de êxtase e cigarros de luxo à juventude que incendiava automóveis e esventrava calçadas, entre batalhas com esquadrões da polícia, enquanto um barão de Rolls-Royce distribuía comunicados de apoio à revolta, conduzido pelo motorista de uniforme. O mundo inteiro ouviu-os gritar que era proibido proibir, que ser realista era pedir o impossível, e exercícios que tais. Dizem que foi assim a vossa revolução, uma espécie de tédio da fartura, e não serei eu a negá-lo, também entre nós houve coisas parecidas, vistas à proporção. Mas, ao comparar histórias e lembranças, convém saber primeiro de que estamos falando. Nesse tempo, talvez houvesse no meu país um português antigo, não sei onde, com memória de ter lido, alguma vez, um jornal que não fosse retalhado pela censura. Três quartos dos meus concidadãos nunca tinham visto uma urna de voto, viciada se convinha. e quem tivesse menos de cinquenta anos não vivera um único dia da vida em liberdade. O ponto de partida da minha revolução era a penúria original, era a mordaça abjecta, era a histórica cegueira, era a mentira iníqua. Andaram entre nós os vossos pensadores, que a novidade e os ecos de anarquia atraíram, lembro-me deles a analisar movimentos e a semear ilusões, a explicar como se virava o mundo sme patrões, a empurrar docemente o povo para becos sem saída. Da memória das vossas revoluções, o que reverencio é o estrondear da tomada da Bastilha, é o fragor fugaz das barricadas da Comuna, é o pavor da vossa fidalguia empoada e o começo do mundo que se lhe seguiu, bom ou mau tenha sido.

Vão três pessoas aconchegadas no limitado espaço duma carruagem de comboio, em conversa amena sob o dossel da noite, parece que tudo as vai aproximando, até que vem meter-se entre elas um mar inteiro de distância. Há uma perturbação no ar, ao instinto sagaz de Geneviève não escapa a intolerância radical de Gabriel, que não disfarçou o sarcasmo, será tudo obra do cansaço e do rodar da noite. A mulher deixa cair a última pergunta, primeira de todas na lógica das curiosidades, quer saber por que vão neste comboio os viajantes. Porque a revolução é como o velho Cronos, responde Gabriel, cedo se põe a devorar os filhos, mormente os que mais ideal e maior zelo lhe entregaram, é dos livros que nenhum logrará escapar. Mais não disse Gabriel, e a isto não soube Geneviève o que responder, quiçá ficou na mesma, o silêncio instalou-se.

Gaspar lamenta o rosto da mulher a fechar-se, próprio de quem se ausenta, distante vai já Gabriel, recostado finalmente na poltrona, de olhos fechados, as mãos cruzadas sobre o ventre inquieto. É da natureza da revolução, pensa Garpar, tão difícil de levar à prática por não haver possível consenso sobre ela. Ponham-se dois a discuti-la, que logo este alega um sofisticado mal-de.vivre onde aquele argumenta com a fome ancestral da terra, sonha um com o devaneio da liberdade sem limite, quando outro aspira apenas à mesquinha dignidade original do ser humano. Todo o movimento é ditado pelo modo como cada homem vê o mundo, segundo o lugar que nele ocupa, houvesse geral entendimento sobre a revolução e logo ela se tornava supérflua.

A nós saiu-nos a personagem dos limites da urbanidade, apuradíssima no lugar e na circunstância, forçoso nos é silenciá-la. Ainda bem que Poitiers está perto, é o destino da mulher. Cabe agora a Gaspar devolver-lhe o saco de viagem, ela endireita a capa e despede-se numa cortesia discreta, se este aceno não foi uma afeição que apenas aflorou. No resto da noite só Gaspar velará, entregue ao fluir dos pensamentos. Acrescentemos nós aqui o que por dizer ficou, desses dias de júbilos e risos, de ilusões e de fraternidades que não vão repetir-se, desses dias de angústias e delírios em que a vida ganhou um final sentido novo, e a certeza segura de que o futuro estava ali, ao alcance da mão. (Cont.)

 

segunda-feira, 31 de março de 2025

As Aves 6-1

O comboio entrou devagar na estação de Bordéus, inundou de ruídos a majestosa nave desta catedral de tijolos e aço, erguida há um século pela fé no progresso mecânico, e parou ao longo do cais, com grande chiadeira de ferros. Ao fundo um relógio colossal marcava a meia noite. Cansados da imobilidade, os viajantes agitaram-se quando a luz crua dos holofotes invadiu o compartimento. A conversa parou, e Gaspar levantou-se a esticar o pescoço para a vastidão das plataformas, a geometria rígida das vigas de aço, a amplidão das grandes vidraças abertas para o nada da escuridão exterior. As coisas ganham outro sentido com a agitação febril das multidões diurnas, pensou Gaspar, enquanto uns poucos passageiros desciam ensonados ao cais e outros tantos embarcavam, por tão pouco nem valia a pena ter parado. E ficou a imaginar o frenesi cosmopolita alastrando pelas gares, burgueses apressados e mulheres perfumadas passando, ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó coisas todas modernas, up-lá hô! E tudo isto são êxtases de poeta sensacionista inebriado de estrépitos da modernidade, ou será este um modo de viajar pelo mundo para quem outro não teve, comparado com isto o meu país é um pequeno recanto de província.

Já, porém, Geneviève insistia, presa ainda no fio do discurso de Gabriel, a querer saber do confronto com os fantasmas antigos, como foi que as flores apareceram, não é muito comum ver militares a derrubar os mitos da história, bem ao contrário, se para eles vivem, nem a atulhar de flores a boca dos canhões, que para mais duros destinos foram feitos.

Quem tinha razão era o cabo João Saar, retomou Gabriel, depois duma hesitação. Por tão redonda ser a bola do mundo, tanto os portugueses andaram em frente, que vieram um dia a achar-se no exacto ponto donde haviam partido. O fim da guerra era o mesmo fim do império, e era o fim da tirania mais longa do mundo, Portugal acabara por dar a si próprio um nó cego, que só os militares podiam desatar. Ora é sabido como a tropa foi feita para executar as ordens que de cima para baixo sempre nascem, ao invés da geral natureza, em que tudo rompe de baixo para cima, e assim ficará justificado o traço peremptório de tantos regulamentos, e o terminal rigor dos códigos deontológicos. Não sendo de esperar que a ordem de levantamento brotasse um dia lá do alto, que é onde os mitos moram, e viesse descendo a longa escadaria, até chegar às mãos que obrigam a mover-se as culatras dos canhões, houve que fazer as coisas ao inverso, por uma vez seguindo as leis do ordinário mundo. Uma coluna de subalternos partiu de Santarém numa noite de Abril e galopou furtiva até Lisboa, ao romper da madrugada estava no Terreiro do Paço onde os ministros se juntavam, não tardou muito e já os carros de assalto do governo tomavam posição na Ribeira, prontos a tirar a limpo o que ali se passava. Se estes canhões apontados a nós se lembram de abrir fogo, era uma vez uma revolução, pensou o capitão rebelde, ciente da fraqueza dos seus meios.Para o que der e vier guarda no bolso uma granada, e avança pela rua do Arsenal, de braços levantados, disposto a parlamentar.

O homem está sozinho no meio da rua, diante dum carro de combate, o olhar fixo na boca do canhão. Ao lado, um brigadeiro floreteia o pingalim e grita ordens de fogo. E qualquer coisa remota se põe a estremecer, o mesmo nada indecifrado que se punha a vibrar no peito deste homem nos matos da Guiné, quando as granadas nocturnas de morteiro caíam a assobiar e lhe explodiam cegas à volta. Lá sempre havia o refúgio da terra, como um regaço materno acolhedor. Mas agora o homem está de pé em frente do canhão, à luz crua da manhã, os braços levantados sobre as pedras madrastas da calçada, e todo o peso do peito lhe assenta no fio gelado duma baioneta, se Deus terá hoje acordado cedo, era esta a hora de intervir.

Já o alferes recusa cumprir o comando hierárquico, já o brigadeiro vocifera ordens de prisão e repete a ordenança, que seja o soldado a disparar. Mas o canhão permaneceu calado, enquanto rodava lentamente a boca escura para os lados do rio, e foi nesse instante que a revolução venceu. Os mitos foram desabando na calçada em catadupa, a explodir nuam auréola de estilhas que luziam, pareciam afinal manipansos de filme em movimento lento, e no peito deste homem alguma indecifrada coisa voltou a serenar.

A esta hora acordava a cidade. (Cont.)

sexta-feira, 28 de março de 2025

As Aves 5-9

Incapaz de ver os erros do passado, só restava a Portugal passar a vida a repeti-los. Um dia tomou conta do governo um professor de Finanças, bisonho camponês que a igreja modelou num espírito de frade, austero, ardiloso, agudíssimo, implacável. Conhecia como ninguém a alma dos portugueses, era ele a sua mais perfeita imagem. Desdenhava da fatuidade dos salões e desprezava as multidões primárias, era um deserdado que só acreditava em elites. Não apreciava indústrias, por tanto se temer do ruído dos operários a sair do bojo das fábricas, proibiu a coca-cola para que não houvesse exemplos de sociedades eficazes, sonhava-se ministro dum rei absoluto deslocado no tempo, um Pombal despótico e tirano a quem sobrava a manha e faltava o esclarecimento. Governava o país do fundo duma vela, e, milagre supremo, pôs em ordem as finanças pelo cálculo mais elementar. Domesticado o povo pela inanição e pelo silêncio, mourejavam três quartos dum país infantilizado há séculos, para que o restante quarto vivesse à tripa forra. Era esta a lei universal do mundo.

Mas a história, que nunca tem pressa, acaba sempre por chegar, e o fim chegaria também aos impérios coloniais europeus. Os mapas do mundo começaram a mudar, ganhavam um país novo em cada dia. A França majestosa, do alto da sua soberbia, fugira da Indochina com as calças na mão, e retirara-se da Argélia antes que as mesmas lhe caíssem definitivamente pernas abaixo. Empurrados pelo vento, de gurupés apontado a casa, viam-se passar, mar acima, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Alheado do mundo na penumbra da cela, o professor de Finanças pôs-se a desfraldar os antigos cenários pintados da epopeia, a deformar a história para melhor dar vida aos mitos. Do dia para a noite as colónias deixaram de o ser, e a um toque de vara de condão sumiram-se no ar os portugueses de primeira, de segunda, de terceira, qualquer rústico de Fafe era tão português como um nómada qualquer do deserto de Moçâmedes, todos filhos duma nação que não cabia na Europa inteira, vastíssima de Lisboa à Sibéria, e o ponto mais alto e subido da pátria era o pico do Ramelau, na parte leste da ilha de Timor. Um dia, três mil soldados de chinelas, sem munições nem armas, vieram a achar-se em frente dum exército de quarenta e cinco mil indianos, que reclamavam Goa. Invocado ali o infante D. Henrique, logo ordenou o professor de Finanças que nem um português sobrasse vivo, para que o destino pátrio se cumprisse. Já sorte menos funesta colheu os dois amanuenses, que no forte de São João Baptista de Ajudá mantinham vivo o esplendor imperial, e velavam a memória do tráfico negreiro. Foi-lhes apenas ordenado que lançassem fogo à praça, antes de a abandonarem aos negros e baterem em retirada.

Um império de marionetas de feira, que durante séculos arruinara a alma da nação e punha a rir o mundo inteiro, tinha de acabar como sempre vivera. E quando a guerra começou nas fazendas do Congo e nos cafezais dos Dembos, abrindo o pano ao último acto da tragicomédia, ninguém ficou surpreendido quando o lapuz das Finanças atulhou de soldados os porões do Niassa e mandou levantar ferro para Angola, rapidamente e em força. A indolência e a cupidez, que tinham alimentado a vesânia do império, transformaram-se em paranóia. Diante do turbilhão que se podia imaginar, qualquer simples espírito cristão saberia que era urgente salvaguardar os povos, as vidas,os haveres, em vez de os lançar a todos num braseiro. Mas os políticos dementes de Lisboa tomavam-se por actores dum destino providencial, estavam ali para defender da barbárie a civilização ocidental. Vinha aí, sem demora, a terceira guerra mundial. E o país devia, assim,subir ao gólgota, para assegurar, no fururo, a salvaguarda do império e a redenção do mundo. Um dia, o mesmo mundo ia dar-nos razão.

Mas não chegou a dar. Nem nós a tínhamos, nem a prometida guerra apareceu a trazê-la numa bandeja. Em lugar disso, o que fez o mundo foi ostracizar-nos, foi mandar-nos rezar uma missa por alma, foi esquecer que existíamos. E realmente, se alguma vez o foi, o país de Portugal deixara de existir. O melhor da juventude era sacrificado no açougue dos sertões de África, ou desertava aos milhares, preferindo lavar à mão os pratos todos da Europa, a deixar-se trucidar nos escombros da história. Abandonado a si mesmo, a ver se escapava à fome, o povo há muito que fugira a salto, das aldeias abandonadas a velhos tristes, a crianças ao deus-dará.

De forma que, durante treze anos, a tropa fez das tripas coração, para dar aos políticos dementes de Lisboa o tempo de escreverem o testamento do império. Mas eles carregavam a maldição da Índia na alma, e passavam a vida a jurar que não haviam de ser a geração da traição. Preferiam a hecatombe dum exército derrotado a afogar-se no mar, ou a galopar sem norte pelo sertão, ao compasso dos tantãs da sanzala. Foi por isso que a minha revolução aconteceu. (Cont.)

segunda-feira, 24 de março de 2025

As Aves 5-8

Mas os filões do sertão haviam de exaurir-se, e um dia o Brasil tornou-se independente, com grande consternação geral. Assim desamparado, passou o reino a viver de mão estendida, governado por estrangeiros, ao sabor dos encontrões da história, igual a uma torrente que as leis da natureza impedem de estancar, e do alto do monte se despenha aos trambolhões. De mãos vazias, quando as deviam ter carregadas de vergonha, os poderosos do reino puseram-se a alimentar de lendas a escudela do povo, a entreter-lhe a alma com epopeias de bruma, a ofuscar-lhe os olhos com glórias de artifício, como se faz aos touros nas arenas. Entretanto burgueses do comércio foram tomando o lugar duma aristocracia degenerada e frouxa, desempregada dum império que há séculos inventara, e que não chegou a existir. Sonhavam só com uma noiva fidalga, com o aluguer dum título, com a pechincha dum brasão, para ascenderem ao baronato. O resto era um país de heróis do mar, a divagar entre quimeras, a consolar o ouvido com ecos de miragens, e a bradar às armas por esplendores de antanho.

Mais porque os meteram à força nos navios ingleses do que por acreditarem em tais brados, é que milhares de portugueses acabaram imolados nas trincheiras da guerra da Flandres, onde ninguémos chamou, onde ninguém os queria, ou vieram a morrer perdidos nas aldeias, dos peitos que trouxeram rebentados dos gases das granadas. Mas a maldição da Índia mantinha-se em vigor, e era preciso salvar as colónias africanas da cobiça europeia. Verdadeé que só os degredados lhes sabiam dizer o paradeiro, mas foi delas que a hidra passou a alimentar-se, com redobrada sofreguidão.

Gaspar ia ouvindo o companheiro sem pestanejar, já repeso de apressados julgamentos, dos juízos levianos que escutámos. A tão pouco se resume o drama português, que há muito tempo assim é e agora vemos repetido. Aos que tocam a guitarra falta a unha, a quem tem unha interdita-se a guitarra. Ganham os tocadores de rabecão. E com estes pensamentos questionava Gaspar a rudeza duma frase, a segurança duma afirmação. No íntimo, porém, a entender finalmente a imagem fatal do plano inclinado, por onde o país há séculos deslizava, no íntimo a entender que a guerra das colónias fora um maldito fadário inelutável, que só uma final rebelião podia ter quebrado. 

Geneviève tornou à sua. Por certo houvera em todo o reino algumas vozes críticas, quis saber por que ninguém afrontara o destino, durante tantos séculos. Concordou Gabriel que as tinha havido sempre, múltiplas e lúcidas, agudíssimas vozes de poetas, de metres e diplomatas, de alguns fidalgos e até príncipes da corte. Mas vozes insubmissas acabaram sempre em Portugal penduradas num prego atrás da porta, que é onde se enforcam os trastes sem valor, ou afogadas na poeira húmida de sótãos e masmorras. A começar pelo próprio Camões, que sem remorso foi deixado a morrer na indigência, antes de fazerem dele o símbolo da pátria. Ao longo dos tempos, todas as castas poderosas lhe usaram a épica voz para dar vida aos mitos de que se alimentaram, escondendo-lhe, porém, o verbo crítico, da estulta e fatal temeridade, da cupidez corrupta, da rudíssima e torpe ignorância, e por fim da mísera condição de abandono da pátria, caída em apagada e vil tristeza.

E outros houve, ao longo de séculos, que fizeram à pátria perguntas que ficaram sem resposta, e com ele irradiaram uma luz vivíssima, e acabaram na fogueira, ou na masmorra, ou no exílio, para sossego do trono e do altar. Em nome da pátria, os poderosos devoraram sempre os mais sabedores de todos, os mais insubmissos e os mais lúcidos, os Damiões de Góis e os Teives humanistas, os Vieiras e os Cavaleiros de Oliveira, os Verneys e os Ribeiros Sanches, e até os duros Pombais, quando existiram, os estrangeirados iluministas, os liberais malhados, os republicanos maçons, os socialistas utópicos, os Jesus Caraça e os Azevedos Gomes, os Rodrigues Lapa e os Pulidos Valente, as Marias Lamas e os Jorges de Sena e os Luíses Gomes, e outros quantos, nem um célebre bispo do Porto escapou. (Cont.)

quinta-feira, 20 de março de 2025

As Aves 5-7

Facto é que cedo houve quem se pusesse a falar dos fumos da Índia, que traziam mais riscos de vida que proveito. E alguma real voz afirmou, na assembleia das cortes, que a sustentação do império só poderia obrar-se por milagre. Entretanto a coroa alguma coisa havia enriquecido, Lisboa alcançou uma prosperidade requentada e balofa, é verdade que uns poucos ganharam uma carreira, outros muitos apressada sepultura, mas ao país geral restavam só miragens, a tornar cada vez mais imprecisa, cada vez mais difusa, a linha do horizonte. 

Como se tanto não bastasse ao reino, confundido entre um império que não chegava a sê-lo, e um mar feito cemitério de náufragos e mitos, um rei menor, fanatizado e débil, desembarcou em Marrocos, avançou pelo deserto e pôs-se a fazer negaças a Mafoma. Por lá deixou, insepulto, quanto de Portugal restava, salvou-o a honradez de lá morrer também. Assim órfão de tudo, numa agonia mortal que hoje ninguém poderá avaliar, só restou ao aturdido povo recusar as más novas que vinham de além-mar. Saudoso das miríficas glórias do oriente, incapaz de entender o destino, correu a sentar-se numa duna, cego do nevoeiro, à espera do rei que havia de voltar na espuma da maré.

É nossa humana condição geral. Por um dia ou por um ano, não raro durante séculos, todos negamos a realidade que nos é impossível suportar. O que há, porém, de trágico, no caso de Portugal, é que ele ainda hoje espera o rei que nunca veio, ainda hoje continua a buscar numa Índia qualquer a solução final, ainda hoje não aceitou que só no cais da sua terra se mantém firme o chão.

Com a sujeição a Espanha, e as derrotas e traições às mãos dos holandeses, tantas conquistas em breve estavam reduzidas a um par de praças decaídas. Nas feiras do reino começaram a correr folhetos a tostão, e os troveiros de rua profetizavam a queda iminente da Índia imperial, que figuravam já no leito de morte, com uma vela na mão. E o rei restaurador confidenciou a um visitante francês que a abandonaria com prazer, se houvesse um modo honroso de o conseguir.

Mas não havia então, nem haveria nunca. E cem anos depois, encontra o segundo viajante a mesma insânia imperial mudada para o Brasil. É verdade que tudo aqui era diferente. Enquanto na Índia se tentou ordenar uma impossível sociedade de guerra e de comércio, onde o mais ínfimo gesto se escorava, cada dia, no gume duma espada, o Brasil foi terra generosa, vaca leiteira do reino fecundada pelo sangue de escravos, que se desentranhou em proventos para os mercadores europeus. Mas o resultado final foi semelhante. Enquanto na Europa se ia inventando a riqueza pela experimentação e pela indústria, continuavam os portugueses a perseguir miragens, a cortar as amarras que os prendiam ao cais, a arrancar as raízes da alma e a lancá-las ao mar como coisas inúteis, ofuscados somente pelo brilho das pepitas do Rio das Velhas. E agora era a própria governação real quem degolava o reino, quem a mãos ambas lhe torcia o garrote nas veias por onde a vida devia fluir, quem deliberadamente lhe metia a cabeça no laço da forca inglesa. A harmonia das núpcias entre o altar e o trono atingia o esplendor. Lisboa aguardava no cais a chegada do trigo francês com que matava a fome, e nos pátios corria uma aragem atávica e fadista, dada às tragédias de faca e alguidar, que era fruto dum espírito alienado e sorna, afeito à delação dominicana. O rei desbaratava o que não tinha, um dia morrerá sem deixar no tesouro com que pagar ao coveiro, as cidades abarrotavam de conventos que eram sucursais do inferno, a marinha do império eram cavernames podres a boiar do Mar da Palha, e o povo deserdado, bêbado da superstição e do fanatismo dos padres, acorria ao sangue das touradas na Ribeira, ou a ver queimar hereges  no Rossio, o olhar estonteado pelo brilho vivíssimo da talha dos altares. (Cont.)

quinta-feira, 6 de março de 2025

As Aves 5-6

Geneviève agitou-se no banco, no íntimo a sentir-se culpada, da ligeireza com que falara da revolução das flores. Quis saber por que dava Gabriel ouvidos a palavras de estrangeiros, em vez de usar vozes de portugueses, se da portuguesa história se tratava. Gabriel deixou o reparo no ar, urgia concluir.

O que pretendo mostrar-lhe, por isso de tão longe parto, de onde tudo começou, é que a aventura da Índia foi para os portugueses uma tormenta muito maior que a nau, como se ouve dizer, foi maldição que o país ficou, desde então, condenado a remir. Como se, ao vencerem o mar, tivessem os marinheiros desafiado uma qualquer lei do universo, ou um regulamento caprichoso da vida. Alguns no reino o perceberam, alguns em vão se lhe opuseram, com tão poucos homens e mais diminutos recursos, muitos ainda hoje não entendem como tudo foi possível. E o espanto maior, para quem nos conheça bem, é que toda a empresa se iniciou no mais perfeito conhecimento e no maior rigor da técnica. Os portugueses construíram as naus mais avançadas desse tempo, conheceram os ventos e as correntes do mar como ninguém, elaboraram cartas, artes de marear e roteiros de viagem que eram a cobiça dos mestres europeus. Venceram as lendas antigas do mar tenebroso e alcançaram a Índia, e submeteram as deslumbrantes terras orientais à força de canhões, e feriram de morte culturas requintadas, e apoderaram-se das rotas do comércio com uma ferocidade selvagem, e trouxeram à Europa os ouros da Mina e do Monomotapa, e os escravos de Ajudá, e as canelas de Ceilão, e as pimentas do Malabar, e as porcelanas da China, e as sedas do Japão, e os cavalos da Pérsia, e os algodões de Cambaia, e a noz moscada das Molucas, e os rubis, as pérolas, as lacas, e até um rinoceronte que emboscaram num sertão de Bengala e vão oferecer ao papa. Já se arredondam em Roma bocas de estupefação, sabes tu lá, minha filha, diz-se que vai chegar aí o supino fulgor do exotismo. Porém o mor espanto não vamos nós poder vê-lo, e é o que haveria de mostrar-se nos grandes olhos da béstia couraçada, por se ver assim à frente dum leão, ainda por cima papa. É que já se vai afundando, à vista de Génova, a caravela que o transporta, tarde se arrependem os náufragos de tanta gala perdida, e mais que todos repesa está a fera, para tão pouco não merecia a pena ter dado a volta a metade do mundo, de estômago revoltado. Um dia há-de ela entrar no palácio de S.Pedro, mas pela simples porta do cavalo, já inofensiva e amparada em cabrestantes, a barriga inchada de palhas amassadas e os velados olhos mordidos dos caranguejos.

Parecia a vida uma festa. Porém, não tardou muito, já os cofres do rei merceeiro abriam bancarrota. E, do alto dos penhascos do Cabo da Tormentas, começaram a avistar-se os bandos de chacais e as esquadras de bucaneiros europeus que demandavam a Índia, tomados de cobiça. Como se nesta caçada tivesse tocado aos portugueses o papel do podengo, no levantar da lebre que outros haveriam de pendurar à cinta. São desses europeus as vozes que me interessa ouvir. Não chamo a terreiro, porém, um estrangeiro incerto e qualquer, antes estes dois de inquestionado saber e não discutida ciência,  que viveram connosco e tiveram de nós desafogada vista. Ainda o delírio do império não ia além dos primeiros passos, já o corpo da nação portuguesa se desagregava, e o viajante primeiro divisava os sinais da ruína. Do mesmo passo que eram empurrados para a Índia, os portugueses cortavam as amarras que os prendiam ao cais, condenavam a sua terra ao abandono, arrancavam as raízes da alma e lançavam-nas ao mar, como coisas inúteis. Foi por tal ver que ficou tão espantado o cabo João Saar, marinheiro entre muitos, da armada holandesa em Ceilão. Já que, onde quer que cheguem, logo os portugueses pensam instalar-se para o resto das vidas, sem mais tenções de voltar a Portugal. Não sei que terra a deles há-de ser, a mim quem me deraque passem seis anos de serviço para retornar à Europa. Pois sendo redonda a esfera, não se dão conta, os pobres, de que sempre ao mesmo sítio há-de tornar quem em frente vai correndo. (Cont.)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

As Aves 5-5

A senhora conhecerá este quadro dos livros, não duvido, mas convir-lhe-á aqui voltar a ele, com os olhos atentos do imaginar. Sai, manhã cedo, dos Estaus do Rossio,a procissão. Por ter aqui a morte o primeiríssimo lugar, vai à cabeça da fila a ossada do Vila Real, ao dorso dum verdugo encapuchado, naquela caixa escura onde esperneiam horrendos demónios escarlates. Atrás da mancha negra dos domínicos, que lá vai adiante fraldejando o pendão da justiça e da misericórdia, seguem os condenados, por ordem crescente das culpas confessadas. Toda a cidade se juntou na Ribeira, Lisboa inteira acotovela-se à volta do patíbulo para ver espezinhados os hereges, para sentir-lhes o uivo medonho das carnes lentamente esturradas, não poucos se acotovelam para alcançarem um lugar mais fronteiro, para receberem em mão as bênçãos que um frade está esparzindo, porém o mais da ruidosa multidão dispara chufas e pedradas, e tochas de pez a arder, e, por não poderem estes quadrilheiros conter a populaça tomada de furor, recebeu o lobisomem de Alenquer uma zagunchada no rosto, em tal péssimo estado irá ele apresentar-se à justiça divina, com este olho direito vazado e descaído, ainda bem que já leva aprontada a justiça.

Assim feitos em fumo, perderam estes de tudo a melhor parte, que é o banquete da comemoração. Não faltam à mesa priores de conventos, dignitários subidos, ordinários e deputados, párocos seculares e familiares do Santo Ofício. Nem faltam as doçarias e mimos da freiria, as talhas de vinho do Cartaxo e muitos peixes do generoso Tejo, múltiplas aves de pena e carnes numerosas, louvado seja Deus por tamanha abundância, só carneiros consumiram-se catorze.

Era assim. Mas já dois séculos antes, mal tinha o Gama achado o caminho das Índias, houve entre nós outro monarca excelente e piedoso, que lá fora estipendiou os melhores mestres do moderno pensamento, para ilustração das escolas do reino, um deles, escocês, o viria a crismar de rei dos muitos nomes. Quem não tem ciência paga por ela, já uma vez ficou dito por ser verdade, como se vê tão antiga como a própria ignorância. A salamanca foi ele requestar Clenardo de Lovaina, um homem de saber e modestos costumes, para educar os príncipes seus filhos. Ora já seu pai, para calamento e satisfação do fanatismo, ao mesmo tempo em que abria as portas do império, logo lhe amputava as pernas, ao expulsar do país os hebreus, donos dos cabedais e do saber que a empresa sumamente exigia. De modo igual, o piedoso rei dos muitos nomes, enquanto chamava os homens que às escolas trariam saber e civilização, logo mandou vir de Roma o jesuíta, que sem demora faria do reino coisa sua. Ademais, por lhe parecer isso tão pouco, logo aos mesmos renomados mestres cortava as pernas e o pescoço, requisitando ao papa a Santa Inquisição, que sem demora os meteria a tratos, por hereges. Entenda quem puder, e antes que tarde seja ouçamos a Clenardo, ele nos contará o que viu e deixou dito.

Chega do mar escravaria e ouro, e pimenta às quintaladas, por isso vive Portugal à grande e à francesa, qualquer trabalho útil se tem como vergonha. Jazem os campos de pousio a monte, que todos sevão ao cheiro da canela, às margens do rio de Meca, e muito melhor não estariam as artes mecânicas, se os ruivos europeus não viessem cá dentro exercitá-las. Os naturais desdenham servir-se das mãos, e tudo é feito por escravos e mouros cativos, esses que o próprio Deus despreza, ele é a preta da Mina que vai ao mercado, é a preta da Mina que lava a roupa, é a preta da Mina que varre a casa, é a preta da Mina que vai pela infusa de água, é a preta da Mina que faz os despejos à hora conveniente, e é ainda a preta da Mina a parir os filhos escravos com que havemos de lucrar no mercado, como se fizéssemos criação de pombos. Todos somos fidalgos, ou para lá caminhamos, por isso nos acompanha sempre, rua abaixo ou rua acima, a mesma comitiva, adiante os dois criados batedores, e um terceiro que nos leva o chapéu, e um quarto o capote, não vá ele chover, um quinto segura as rédeas da cavalgadura, um sexto vai ao estribo, a cuidar-nos da seda dos sapatos, um sétimo traz a escova, com que nos limpa do fato as poeiradas da rua imunda, um oitavo nos estenderá o pente em sendo necessário, e ao nono caberá enxugar com uma fralda o suor da cavalgadura, vindo ela a ser desmontada. Com tudo isto sofre a mantença da casa, onde a custo se acha que comer, mormente quando chega o domingo, dia em que ninguém apanha rabanetes na praça.

Aqui chegado, deu Gabriel com a ouvinte rendida ao fio cristalino da sua erudição. Não venho com estas coisas a dar-lhe lições de história, apressou-se a dizer, por certo dispensará as minhas, se as teve melhores. Porém, vastos demais são os tempos e muito longa a forma de os decifrar e dizer, para vidas tão curtas como as nossas, cada um há-se saber da sua. (Cont.)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

As Aves 5-4

E a quem hoje ainda sobrem dúvidas, bastará que se alongue numa tarde soalheira ali ao poviléu dos Povos, a seu tempo uma terra importante, dois passos a pé além de Vila Franca. Lá se erigiu um dia uma fábrica inteira de curtição de couros, com peitas e subornos se aliciaram na Escócia os mestres que haviam de trazer os segredos da casca dos carvalhos, chegaram mesmo a subir o Tejo as fragatas carregadas de peles vindas do Maranhão. Mas logo o inglês moveu empenhos, logo às secretarias da corte fez chegar ameaças e ralhos, a fábrica é que nada veio a fabricar. E o que dela restou é o que aos olhos se nos mostra, a alvenaria perfeita dos muros, a ruína das casas dos obreiros que não chegaram a sê-lo, viriam a desabar finalmente os telhados, figueiras bravas cresceram pelos pátios, tufos de silvados irrompem hoje das janelas.

Ia nesta altura a meio o século das luzes na Europa, retomou Gabriel, e mais que todos brilhava o vivíssimo espírito francês, porém por cá o céu continuava obscuro, do fumo em que se chamuscavam os hereges, e dos braseiros em que se iam aniquilando as consciências. Atente-se, a exemplo, nos tratos que sofreu Manuel Fernandes Vila Real, cristão-novo de pouco mais de quarenta anos, cuja ossada vai arder neste auto-de-fé do assinalado dia primeiro de Dezembro. Homem de viagens e culturas, andarilho do vasto mundo, defendeu a pátria nas praças marroquinas e foi provado servidor dos interesses do rei na corte francesa. A custas suas fez publicar as Décadas da Índia, dum tal Diogo do Couto. Mas iria ser um livro que escreveu, exaltando o vosso cardeal Richelieu, e mais as delações dum frade conterrâneo, invejoso e medíocre, que haviam de ditar-lhe a sentença de morte na Santa Inquisição, a qual foi assinada em Março no palácio do Rossio, ainda o caviloso réu se encontrava em Paris. O Vila Real regressou a Lisboa em fins de Abril, achou-se encarcerado em Outubro, e foi inquirido pela primeira vez cinco meses mais tarde. Ninguém lhe decifra que crime cometeu, nunca saberá de que vem acusado, pacientes que são os autos e eterno o tempo de Deus, como é sabido, a confissão espontânea há-de chegar um dia. O réu é que nunca virá a saber que testemunhas o acusam, nem pode constituir advogado que o defenda. Por três vezes o levam à polé, por três vezes lhe amarram os membros aos madeiros, por três vezes lhe espedaçam as juntas do corpo, que estalam ao romper-se. E, por sobre tudo, na cela medonha onde vai servindo de repasto a ratos e a piolhos, a baratas e a percevejos, introduzem-lhe um falso prisioneiro, espião subornado e delator. Com afagos e blandícias, tecerá o malsim em sua roda uma teia de pérfidos laços, na qual o desgraçado cairá um dia. 

Conquanto negativo e pertinaz, lá acabaria o Vila Real por confessar o que os santos frades tanto esperam ouvir, se não se desse o caso de haver sucumbido à quarta volta da polé. Sossegaram finalmente os atiçados ânimos. E, invocando o nome de Cristo, enfim se proclamou que o Vila Real foi herege e apóstata da recta fé católica, e lá por fora se bandeou com os inimigos da Santa Madre Igreja, e porque em vida tão simulado foi, e falso, e ficto, ser-lhe-ão os ossos descarnados e se queimarão na Ribeira.

Desdita maior é a dos restantes infortunados réus, que são três mulheres por bruxedo, mais dois cristãos-novos por convicta marranice, e mormente a deste João Fagundes Bento, feiticeiro de Alenquer, que a tempo não morreu e arderávivo. Dele consta que se entregou a pactos, e opera curas infernais pela mão do maligno, e pratica visões, e blasfema profecias messiânicas, e lança danações e maus-olhados que fazem cair raios sobre as casas, e são razão das pestes, e motivo das fomes, e levam à perdição as naus da Índia.

E agora afigure a senhora uma tal humana sociedade em que amigos atraiçoam conhecidos, em que pais delatam contra filhos, em que irmãos se denunciam entre si, em que os familiares do Santo Ofício se insinuam nos lares enquanto médicos, enquanto confessores, enquanto íntimos amigos, até captarem os sinais da heresia e os apresentarem a juízo. Ao fim de duzentos anos, diga-me o que sobra da alma deste povo, para quem a delação é indulgência e virtude de salvação.

Ao fazer a pergunta interrompeu-se Gabriel. Subiu um olhar lento pelas formas da mulher, assim abandonadas na poltrona, como quem aspira um fôlego febril, como quem, por fim, atenta nela. Sustém-lhe a mirada nos olhos, muito fixa, inclinado para ela o troco fatigado, ergue no ar as mãos ambas que o ajudam a ilustrar o cenário, e finalmente prossegue. (cont.)

domingo, 16 de fevereiro de 2025

As Aves 5-3

Diz o marquês que numerosos estrangeiros vêm apoquentando el-rei com suas memórias e propostas, visando enriquecer-se a si próprios e ao reino através da agricultura ou das manufacturas, ignorantes de que tais iniciativas e empreendimentos não convêm ao bem do estado,e menos ainda ao sossego e à ventura dos seus habitantes. Pois já que Deus fez do reino o dono de todo o ouro que se tira do Brasil, quase sem ter de cavar, e pois que esse ouro está distante, a mais de duzentas léguas para o interior, o único perigo à vista é a cobiça dos países estrangeiros, que, assaltando os nossos portos, poderiam vir a privar-nos do desfrute de tais tesouros. Nada disso acontecerá, porém, enquanto os ingleses dispuserem do país como vazadouro dos produtos das suas terras e indústrias, caso em que verterão o seu sangue até à derradeira gota, para nos defenderem.

Não têm outra escolha os ingleses, senão trabalhar e proteger-nos, e lá terão a paga assegurada, chega a dizer-se que o ouro do Brasil não alcança a pôr pé em terra portuguesa, que sai das nossas naus para entrar nos porões das armadas inglesas. E assim será, porém do mal o menos, antigamente eram as fragatas holandesas o baú do ouro das Índias, sem mais contrapartida. Pois nós damos aos ingleses maior lucro do que todas as outras nações juntas, sendo eles os únicos a embarcar os nossos vinhos do Douro e as nossas tenras vitelas do Barroso, para uns e outras nos falta a nós aguçado paladar.

Havemos, isso sim, de temer-nos de franceses, prosseguiu o marquês, de quem gostamos mais que dos ingleses, já que somos da mesma religião, e até lhes damos a casar as nossas filhas. Mas a protecção duns nos é mais útil do que a amizade doutros. Os franceses podem fazer-nos guerra sem ferir o seu comércio, e já o teriam feito se não se temessem, no que seriam prontamente ajudados por outras potências marítimas, zelosas das parcas moedas de ouro que os ingleses lhes deixam. E se estes não levam tudo é por mera artimanha política, já que poderiam fazê-lo, dispondo, como dispõem, abundantemente, de toda a qualidade de mercadorias que nos convêm.

Iguais são os motivos por que não desejamos dar-nos à exploração das minas de cobre do Algarve, e das minas de estanho e prata das partes setentrionais do reino, pois assim iríamos arruinar um dos ramos do comércio inglês. Vós sois suíço, vindes dum país que não tem interesse em contender connosco. Por isso vos falo com o coração nas mãos, e vos revelo o político segredo em que assenta a nossa ventura. Só com Roma não podemos manter altercações, já que Roma, embora precisada de nós, nem por isso deixaria de nos prejudicar. Demasiada bulha vem fazendo el-rei, sem falarmos agora do dispêndio de fazendas, só para que os núncios de Sua Santidade em Portugal tenham direito ao chapéu cardinalício. Para açular a inveja dos nossos vizinhos, bastam as bênçãos que Deus nos distribui no Brasil. Havemos, pois, de viver em paz com toda a cristandade, e governar-nos por tal forma que, se uma parte das nações conspirar em perder-nos, a outra se desunhará para nos defender. Deus nos valerá!

Mas não valeu. Nem às pretensões do senhor Merveilleux,  o qual, de abismado, não logrou maneira de contestar o marquês, nem às costumadas penúrias do povo do reino. Já que, à morte deste rei maquiavel agudíssimo, alguma ousada voz de embaixador ilustre, que muito viu e aprendeu nas cortes da Europa, escreverá um dia ao príncipe, herdeiro na sucessão, achará Vossa Alteza boas povoações como Covilhã, Fundão, Guarda, Lamego, Bragança e outras muitas quase desertas, e destruídas as suas manufacturas. Não sei de alguém que a tanto se atreva, porém a mim não me permite a idade final senão a liberdade e o destemor de vos dizer das causas desta dissolução. E vem a ser que, por mão da Inquisição, prendendo uns cristãos.novos e outros fazendo fugir para fora do reino com seus cabedais, por temerem ver-se confiscados sendo presos, forçoso foi que tais manufacturas decaíssem, porque tais chamados cristãos-novos as sustentavam. E a causa segunda vem a ser a permissão que Sua Majestade deu aos ingleses para meterem em Portugal os seus lanifícios, e fios de seda, e vidros, e ferros temperados, e couros curtidos, e toda a sorte de mercadoria.

Razão maior tinha o velho embaixador. (Cont.)