Não agradam a Gaspar estas considerações. Para lá das respostas que não tem, mais o consomem as perguntas que ficaram por fazer, e agora mesmo faria. Mas foi subindo a agitação no cais com o crescer da manhã, na outra ponta do banco sentou-se um alentado viajante, a pilotar um carro de bagagens. E já Gaspar escapa ao solilóquio, nem vai ficar ali o dia todo, nem lhe convêm estes sinais de quem escuta vozes. Folheia o plano da cidade e desce ao caos do metropolitano, entendamos-lhe nós os miúdos cuidados com que regressa ao ponto de partida, onde deixou à guarda a bagagem escassa.
Esta gare de Austerlitz, onde viemos desembarcar ainda a manhã não rompia, é um vastíssimo galpão feito de ferro e amplidões de vidro, povoado de muitas aflições. Pedaço do meu país já lhe chamou um poeta lusitano, se fosse além do mar era uma colónia nova, agora que outras não há. Nos últimos quinze anos desembarcou neste cais um milhão de portugueses. E se piores tribulações lhes não faltassem, aqui mesmo lhes extorquiam as últimas moedas alguns compatriotas traficantes, que acenavam aos pobres com trabalho nas obras e prometiam um barraco onde estender o corpo. Outra coisa não procuravam eles. E assim veio um certo Zeca, é um simples exemplo, a partilhar a cama durante quatro anos com mais três camaradas, dois aos pés, dois à cabeça. Que onde houver gado, o mais certo é haver mercado, e comércio melhor não se arranjou.
No que já leva de vida, Gaspar nunca foi homem de grandes viagens, além das aventuras que a pátria lhe pediu, e algumas que ensaiou de mote próprio. No país ensimesmado que o seu foi, nem viagens verdadeiras eram recomendadas, nem lhas consentiriam apertos de orçamento. Mas vencido o desamparo que atrás vimos, não lhe estranhemos a curiosidade, se não é impaciência, em sair por essas ruas, a ver se corresponde esta cidade-luz às imagens que foi fazendo dela, e às famas que a acompanham desde há muito. Traz feitas as contas para uma espera de três dias, ao quarto há-de apanhar no Bourget um avião que o levará. E é este espírito inquieto que abandona a estação, finalmente pode ver com os próprios olhos muitas coisas de que mal ouviu falar.
Viajar é aprender, não é só perder países, como sugerem poetas. Por isso vai Gaspar compenetrado, de olhos abertos a toda a novidade, são as cores e fachadas de edifícios,vibrações que andam no ar, a harmonia dos lugares, a feição que leva a gente no semblante. Quantas vezes basta um nada para definir um modo inteiro de viver. É o caso da sexagenária que passa o dia atrás do seu balcão, nos banhos públicos desta pequena praça. Por um par de moedas cede apetrechos de banho a quem de seu não tem maiores comodidades, como estes dois clientes africanos, agora mesmo travados de razões. Mas logo ela lhes levanta a voz, de cenho impetuoso e urgente, il fault être poli, quand on est en France! E não sendo o doesto uma decretal do Rei.Sol, foi ele de tal modo exemplar que logo se aplacaram os desavindos contendores.
Gaspar não vem acostumado a estas cidadanias, por este pouco fica em sobressalto. Segue atento às indicações da carta, por deformação antiga, enquanto busca um hotel de orçamento adequado. A bolsa do viajante é o fiel desta balança. E acaba por se instalar no hôtel des deux armées, se algum psicólogo explicaria o gesto, veremos o que a noite nos reserva. (Cont.)