segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

As Aves 5-4

E a quem hoje ainda sobrem dúvidas, bastará que se alongue numa tarde soalheira ali ao poviléu dos Povos, a seu tempo uma terra importante, dois passos a pé além de Vila Franca. Lá se erigiu um dia uma fábrica inteira de curtição de couros, com peitas e subornos se aliciaram na Escócia os mestres que haviam de trazer os segredos da casca dos carvalhos, chegaram mesmo a subir o Tejo as fragatas carregadas de peles vindas do Maranhão. Mas logo o inglês moveu empenhos, logo às secretarias da corte fez chegar ameaças e ralhos, a fábrica é que nada veio a fabricar. E o que dela restou é o que aos olhos se nos mostra, a alvenaria perfeita dos muros, a ruína das casas dos obreiros que não chegaram a sê-lo, viriam a desabar finalmente os telhados, figueiras bravas cresceram pelos pátios, tufos de silvados irrompem hoje das janelas.

Ia nesta altura a meio o século das luzes na Europa, retomou Gabriel, e mais que todos brilhava o vivíssimo espírito francês, porém por cá o céu continuava obscuro, do fumo em que se chamuscavam os hereges, e dos braseiros em que se iam aniquilando as consciências. Atente-se, a exemplo, nos tratos que sofreu Manuel Fernandes Vila Real, cristão-novo de pouco mais de quarenta anos, cuja ossada vai arder neste auto-de-fé do assinalado dia primeiro de Dezembro. Homem de viagens e culturas, andarilho do vasto mundo, defendeu a pátria nas praças marroquinas e foi provado servidor dos interesses do rei na corte francesa. A custas suas fez publicar as Décadas da Índia, dum tal Diogo do Couto. Mas iria ser um livro que escreveu, exaltando o vosso cardeal Richelieu, e mais as delações dum frade conterrâneo, invejoso e medíocre, que haviam de ditar-lhe a sentença de morte na Santa Inquisição, a qual foi assinada em Março no palácio do Rossio, ainda o caviloso réu se encontrava em Paris. O Vila Real regressou a Lisboa em fins de Abril, achou-se encarcerado em Outubro, e foi inquirido pela primeira vez cinco meses mais tarde. Ninguém lhe decifra que crime cometeu, nunca saberá de que vem acusado, pacientes que são os autos e eterno o tempo de Deus, como é sabido, a confissão espontânea há-de chegar um dia. O réu é que nunca virá a saber que testemunhas o acusam, nem pode constituir advogado que o defenda. Por três vezes o levam à polé, por três vezes lhe amarram os membros aos madeiros, por três vezes lhe espedaçam as juntas do corpo, que estalam ao romper-se. E, por sobre tudo, na cela medonha onde vai servindo de repasto a ratos e a piolhos, a baratas e a percevejos, introduzem-lhe um falso prisioneiro, espião subornado e delator. Com afagos e blandícias, tecerá o malsim em sua roda uma teia de pérfidos laços, na qual o desgraçado cairá um dia. 

Conquanto negativo e pertinaz, lá acabaria o Vila Real por confessar o que os santos frades tanto esperam ouvir, se não se desse o caso de haver sucumbido à quarta volta da polé. Sossegaram finalmente os atiçados ânimos. E, invocando o nome de Cristo, enfim se proclamou que o Vila Real foi herege e apóstata da recta fé católica, e lá por fora se bandeou com os inimigos da Santa Madre Igreja, e porque em vida tão simulado foi, e falso, e ficto, ser-lhe-ão os ossos descarnados e se queimarão na Ribeira.

Desdita maior é a dos restantes infortunados réus, que são três mulheres por bruxedo, mais dois cristãos-novos por convicta marranice, e mormente a deste João Fagundes Bento, feiticeiro de Alenquer, que a tempo não morreu e arderávivo. Dele consta que se entregou a pactos, e opera curas infernais pela mão do maligno, e pratica visões, e blasfema profecias messiânicas, e lança danações e maus-olhados que fazem cair raios sobre as casas, e são razão das pestes, e motivo das fomes, e levam à perdição as naus da Índia.

E agora afigure a senhora uma tal humana sociedade em que amigos atraiçoam conhecidos, em que pais delatam contra filhos, em que irmãos se denunciam entre si, em que os familiares do Santo Ofício se insinuam nos lares enquanto médicos, enquanto confessores, enquanto íntimos amigos, até captarem os sinais da heresia e os apresentarem a juízo. Ao fim de duzentos anos, diga-me o que sobra da alma deste povo, para quem a delação é indulgência e virtude de salvação.

Ao fazer a pergunta interrompeu-se Gabriel. Subiu um olhar lento pelas formas da mulher, assim abandonadas na poltrona, como quem aspira um fôlego febril, como quem, por fim, atenta nela. Sustém-lhe a mirada nos olhos, muito fixa, inclinado para ela o troco fatigado, ergue no ar as mãos ambas que o ajudam a ilustrar o cenário, e finalmente prossegue. (cont.)