quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

As Aves 5-1

Fala-me da tua revolução, foram estas as palavras da mulher, ainda jovem, que entrou no comboio em Dax. Claro que não foi assim do pé para a mão que a imperativa explodiu, tudo na vida tem o seu germinar e o seu nascer, mormente em se tratando da apurada manobra destes comércios humanos. A mulher, que deambulava no cais, a protestar com a neblina e o frio, embarcou finalmente nesta carruagem nocturna, procurou um compartimento mais desafogado, e acabou a decidir-se por este ocupado somente por dois viajantes tranquilos, já era tempo de o serem. Um deles folheia uma revista, o outro vai olhando para lá da janela o que se podever da noite antiquíssima.

A sua entrada acordou naturais curiosidades, atraiu os olhares enquanto se desfazia da capa molhada, Gabriel levantou-se, tenteou um primeiro gesto na direcção do saco de viagem, a consequência foi tê-lo içado para a grade das bagagens. Foi aqui a vezda mulher abrir um sorriso de real ou fingida surpresa, tão raros são de ver, hoje em dia, estes requebros de viril gentileza. Mas antes dela fora Gaspar o primeiro a ficar surpreendido, não há dúvida que mudámos de mundo, onde é que uma mulher portuguesa viria agora sentar-se num compartimento só ocupado por dois estranhos neste comboio, demais a esta hora da noite e prevendo-se longa a viagem. A mulher agradeceu, num jeito contido embora manifesto, e nós, que vamos fazer desta aparente contradição que nos fica nos braços, não tem de quê, foi mais o gesto que o esforço, isto é o que sugere a ínfima vénia de Gabriel e uma poucas palavras em francês.

É bem verdade só existirmos nós por aquilo que fazemos, ou pela função que temos a desempenhar, não faltarão aqui os filósofos da ataraxia atestando o contrário, ou os poetas do fingimento, sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo... contente quase e bebedor tranquilo, A prová-lo, porém, vem Gabriel, que só agora ganhou direito a nome e a uma identidade, não fora este seu gesto cavalheiro e passava por nós sem deixar rasto, tarde demais íamos descobrir quanto ficávamos a perder. (Cont.)