A senhora conhecerá este quadro dos livros, não duvido, mas convir-lhe-á aqui voltar a ele, com os olhos atentos do imaginar. Sai, manhã cedo, dos Estaus do Rossio,a procissão. Por ter aqui a morte o primeiríssimo lugar, vai à cabeça da fila a ossada do Vila Real, ao dorso dum verdugo encapuchado, naquela caixa escura onde esperneiam horrendos demónios escarlates. Atrás da mancha negra dos domínicos, que lá vai adiante fraldejando o pendão da justiça e da misericórdia, seguem os condenados, por ordem crescente das culpas confessadas. Toda a cidade se juntou na Ribeira, Lisboa inteira acotovela-se à volta do patíbulo para ver espezinhados os hereges, para sentir-lhes o uivo medonho das carnes lentamente esturradas, não poucos se acotovelam para alcançarem um lugar mais fronteiro, para receberem em mão as bênçãos que um frade está esparzindo, porém o mais da ruidosa multidão dispara chufas e pedradas, e tochas de pez a arder, e, por não poderem estes quadrilheiros conter a populaça tomada de furor, recebeu o lobisomem de Alenquer uma zagunchada no rosto, em tal péssimo estado irá ele apresentar-se à justiça divina, com este olho direito vazado e descaído, ainda bem que já leva aprontada a justiça.
Assim feitos em fumo, perderam estes de tudo a melhor parte, que é o banquete da comemoração. Não faltam à mesa priores de conventos, dignitários subidos, ordinários e deputados, párocos seculares e familiares do Santo Ofício. Nem faltam as doçarias e mimos da freiria, as talhas de vinho do Cartaxo e muitos peixes do generoso Tejo, múltiplas aves de pena e carnes numerosas, louvado seja Deus por tamanha abundância, só carneiros consumiram-se catorze.
Era assim. Mas já dois séculos antes, mal tinha o Gama achado o caminho das Índias, houve entre nós outro monarca excelente e piedoso, que lá fora estipendiou os melhores mestres do moderno pensamento, para ilustração das escolas do reino, um deles, escocês, o viria a crismar de rei dos muitos nomes. Quem não tem ciência paga por ela, já uma vez ficou dito por ser verdade, como se vê tão antiga como a própria ignorância. A salamanca foi ele requestar Clenardo de Lovaina, um homem de saber e modestos costumes, para educar os príncipes seus filhos. Ora já seu pai, para calamento e satisfação do fanatismo, ao mesmo tempo em que abria as portas do império, logo lhe amputava as pernas, ao expulsar do país os hebreus, donos dos cabedais e do saber que a empresa sumamente exigia. De modo igual, o piedoso rei dos muitos nomes, enquanto chamava os homens que às escolas trariam saber e civilização, logo mandou vir de Roma o jesuíta, que sem demora faria do reino coisa sua. Ademais, por lhe parecer isso tão pouco, logo aos mesmos renomados mestres cortava as pernas e o pescoço, requisitando ao papa a Santa Inquisição, que sem demora os meteria a tratos, por hereges. Entenda quem puder, e antes que tarde seja ouçamos a Clenardo, ele nos contará o que viu e deixou dito.
Chega do mar escravaria e ouro, e pimenta às quintaladas, por isso vive Portugal à grande e à francesa, qualquer trabalho útil se tem como vergonha. Jazem os campos de pousio a monte, que todos sevão ao cheiro da canela, às margens do rio de Meca, e muito melhor não estariam as artes mecânicas, se os ruivos europeus não viessem cá dentro exercitá-las. Os naturais desdenham servir-se das mãos, e tudo é feito por escravos e mouros cativos, esses que o próprio Deus despreza, ele é a preta da Mina que vai ao mercado, é a preta da Mina que lava a roupa, é a preta da Mina que varre a casa, é a preta da Mina que vai pela infusa de água, é a preta da Mina que faz os despejos à hora conveniente, e é ainda a preta da Mina a parir os filhos escravos com que havemos de lucrar no mercado, como se fizéssemos criação de pombos. Todos somos fidalgos, ou para lá caminhamos, por isso nos acompanha sempre, rua abaixo ou rua acima, a mesma comitiva, adiante os dois criados batedores, e um terceiro que nos leva o chapéu, e um quarto o capote, não vá ele chover, um quinto segura as rédeas da cavalgadura, um sexto vai ao estribo, a cuidar-nos da seda dos sapatos, um sétimo traz a escova, com que nos limpa do fato as poeiradas da rua imunda, um oitavo nos estenderá o pente em sendo necessário, e ao nono caberá enxugar com uma fralda o suor da cavalgadura, vindo ela a ser desmontada. Com tudo isto sofre a mantença da casa, onde a custo se acha que comer, mormente quando chega o domingo, dia em que ninguém apanha rabanetes na praça.
Aqui chegado, deu Gabriel com a ouvinte rendida ao fio cristalino da sua erudição. Não venho com estas coisas a dar-lhe lições de história, apressou-se a dizer, por certo dispensará as minhas, se as teve melhores. Porém, vastos demais são os tempos e muito longa a forma de os decifrar e dizer, para vidas tão curtas como as nossas, cada um há-se saber da sua. (Cont.)