Facto é que cedo houve quem se pusesse a falar dos fumos da Índia, que traziam mais riscos de vida que proveito. E alguma real voz afirmou, na assembleia das cortes, que a sustentação do império só poderia obrar-se por milagre. Entretanto a coroa alguma coisa havia enriquecido, Lisboa alcançou uma prosperidade requentada e balofa, é verdade que uns poucos ganharam uma carreira, outros muitos apressada sepultura, mas ao país geral restavam só miragens, a tornar cada vez mais imprecisa, cada vez mais difusa, a linha do horizonte.
Como se tanto não bastasse ao reino, confundido entre um império que não chegava a sê-lo, e um mar feito cemitério de náufragos e mitos, um rei menor, fanatizado e débil, desembarcou em Marrocos, avançou pelo deserto e pôs-se a fazer negaças a Mafoma. Por lá deixou, insepulto, quanto de Portugal restava, salvou-o a honradez de lá morrer também. Assim órfão de tudo, numa agonia mortal que hoje ninguém poderá avaliar, só restou ao aturdido povo recusar as más novas que vinham de além-mar. Saudoso das miríficas glórias do oriente, incapaz de entender o destino, correu a sentar-se numa duna, cego do nevoeiro, à espera do rei que havia de voltar na espuma da maré.
É nossa humana condição geral. Por um dia ou por um ano, não raro durante séculos, todos negamos a realidade que nos é impossível suportar. O que há, porém, de trágico, no caso de Portugal, é que ele ainda hoje espera o rei que nunca veio, ainda hoje continua a buscar numa Índia qualquer a solução final, ainda hoje não aceitou que só no cais da sua terra se mantém firme o chão.
Com a sujeição a Espanha, e as derrotas e traições às mãos dos holandeses, tantas conquistas em breve estavam reduzidas a um par de praças decaídas. Nas feiras do reino começaram a correr folhetos a tostão, e os troveiros de rua profetizavam a queda iminente da Índia imperial, que figuravam já no leito de morte, com uma vela na mão. E o rei restaurador confidenciou a um visitante francês que a abandonaria com prazer, se houvesse um modo honroso de o conseguir.
Mas não havia então, nem haveria nunca. E cem anos depois, encontra o segundo viajante a mesma insânia imperial mudada para o Brasil. É verdade que tudo aqui era diferente. Enquanto na Índia se tentou ordenar uma impossível sociedade de guerra e de comércio, onde o mais ínfimo gesto se escorava, cada dia, no gume duma espada, o Brasil foi terra generosa, vaca leiteira do reino fecundada pelo sangue de escravos, que se desentranhou em proventos para os mercadores europeus. Mas o resultado final foi semelhante. Enquanto na Europa se ia inventando a riqueza pela experimentação e pela indústria, continuavam os portugueses a perseguir miragens, a cortar as amarras que os prendiam ao cais, a arrancar as raízes da alma e a lancá-las ao mar como coisas inúteis, ofuscados somente pelo brilho das pepitas do Rio das Velhas. E agora era a própria governação real quem degolava o reino, quem a mãos ambas lhe torcia o garrote nas veias por onde a vida devia fluir, quem deliberadamente lhe metia a cabeça no laço da forca inglesa. A harmonia das núpcias entre o altar e o trono atingia o esplendor. Lisboa aguardava no cais a chegada do trigo francês com que matava a fome, e nos pátios corria uma aragem atávica e fadista, dada às tragédias de faca e alguidar, que era fruto dum espírito alienado e sorna, afeito à delação dominicana. O rei desbaratava o que não tinha, um dia morrerá sem deixar no tesouro com que pagar ao coveiro, as cidades abarrotavam de conventos que eram sucursais do inferno, a marinha do império eram cavernames podres a boiar do Mar da Palha, e o povo deserdado, bêbado da superstição e do fanatismo dos padres, acorria ao sangue das touradas na Ribeira, ou a ver queimar hereges no Rossio, o olhar estonteado pelo brilho vivíssimo da talha dos altares. (Cont.)