O viajante tem fraco entendimento destas simbologias, e das razões que lhes deram nascimento.Observa de relance a dúzia de finas agulhas rendilhadas, que se espetam no céu e lhe causam vertigens, e irrompem dum confuso jardim de ramagens de pedra, dum turbilhão de linhas em que os olhos se perdem em arabescos de calcário, qual teia duma aranha atónita, onde ficaram eternamente imóveis assembleias de apóstolos, concílios de beatos, comícios de sisudos profetas, estátuas de evangelistas circunspectos, bustos de princesas coroadas, academias de arcanjos, virgens a esmagar dragões zangados, béstias mitológicas, sátiros infernais, grifos, tritões, centauros, sibilas, polifemos, elfos e olharapos, copistas presos às bancas, bodes de costas voltadas, sereias de cauda dupla, touros de cornos em lira, gnomos sem cabeça, pégasos alados, águias bicéfalas, demónios a ferver proscritos nus em caldeirões, basisliscos, lobisomens, gáugulas, brasões, e sobre este portal dão-se as mãos um sujeito de casula e mitra e outro de elmo e couraça, e meio escondida aqui neste recanto ergue uma taberneira um pichorrão de vinho em cada mão, e no alto desta coluna abriga-se ao capitel uma abadessa cujos peitos inflados dois faunos abocanham, não vale a pena procurarmos mais, vivas aqui só as gralhas a ralhar entre si nos pináculos, e quem nos espia rindo é o diabo em pessoa, atrás daquele arcobotante.
Gaspar conclui rapidamente o circuito dos terraços e das platibandas, das cornijas e das carrancas, um dia saberá apreciar, um dia aprenderá a entender melhor estes lugares e estes mistérios da vida. Hoje tem apenas a vaga intuição de que ninguém constrói uma fábrica assim, senão para afirmar o poder que tem. Todas as divindades lhe são por igual indiferentes. Mas, a haver um criador dos homens e do mundo, por certo o seu único e profanado templo era o corpo do alvanil que um dia subiu a esta torre para acomodar-lhe a pedra de fecho, e com ela se despenhou, no terreiro desta praça de Santa Maria.
Mal deixam Burgos para trás, caem os viajantes em prolongado sono, não falamos, claro, de João, que não pode descartar-se de papel mais activo e vigilante. A próxima paragem é para lá de Vitória, no fim jantaremos na Baiona francesa e despedimo-nos, isto foi o que ele deixou dito logo à saída, antes de uma chuva miúda e quezilenta vir puxar o brilho à fita negra da estrada, cerrar as cortinas da paisagem e reduzir ainda mais o espaço de manobra aos viajantes.
Assim adormecido, Gaspar fica liberto de cogitações sobre floreados de pedra, e o ofendido corpo do alvanil há muito que regressou ao pó, nem em pesadelos viria agora recuperer alento. E só acordará, falamos de Gaspar, lá muito para diante, quando a isso o forçarem os incómodos da orografia, e os montes do país basco vierem a quebrar a suave monotonia desta rota.
E é pena, que então já será tarde. Cada um sabe de si, verdade amiúde publicada e nem sempre pertinente, sobretudo se tivermos na conta devida quanto pode ajudar-nos, no avaliar das dores próprias, o cotejo com alheios males maiores. Este viajante não nos tem escondido desconfortos e incertezas ao longo da viagem, às vezes desalento, quando não mau humor. Para seu governo e edificação, convir-lhe-ia atentar nestes caminhos do mundo, trilhados que têm sido por tanta gente em pior condição e mais lastimoso estado. Mas isso são histórias a que Gaspar não assistiu, nem menos adormecido lhe serviriam de consolo. (Cont.)