E agora, meu herói?! Uma a uma fomos perdendo as amarras, a última partiu neste comboio que já partiu para norte e nos deixou sozinhos. Abraçaste o companheiro à pressa, guardaste o guia da cidade em que não tinhas pensado e te vai fazer falta, meteste no bolso um telefone obscuro, para algum acaso imprevisto. Agora aí sentado nesse banco, perdido o olhar no cais por onde passam vultos indiferentes, não sabes bem o que fazer de ti.
Entraste na luta pela liberdade, por teres sonhado que a liberdade é para todos.Tu, que nunca viveste em liberdade, nem sabes que ela ou se recebe já pronta, como um dote, ou será fruto de aprendizagem dura. Cedo te caiu em cima a férula paterna, descomedida e cega, ainda a levas às costas sem que o saibas. Passaste pela mão dos padres, no tempo em que a tua essência era uma tábua rasa, uma intocada tela onde podia inscrever-se o mundo inteiro, qualquer rascunho do génio, qualquer borrão da vulgaridade. E acabaste submetido à rudeza militar, ao espartilho pouco racional dos códigos de papel. Aprendeste a ser submisso, timorato, cumpridor, a ter respeitos humanos, a tomar em boa conta o pensamento dos outros. Não sabes que a liberdade é um rasgão original, é escolher alguma rota numa encruzilhada e não tirar dela os olhos. O resto é sofrimento e solidão. Por isso estás aqui de mãos desamparadas, vieste parar aqui e já vacilas, não sabes de que te serve a liberdade.
E ainda te vai no adro a procissão. Que farás quando vieres a descobrir que a febre que te moveu, e tomaste por verdade indiscutível, nunca passou a fronteira do sonho? Que vais tu fazer ao dar-te conta de que o teu país voltou à embriaguez antiga, dos milagres trazidos pelo vento que há-de chegar da Europa? À mesma corrompida cupidez, à rudíssima e torpe ignorância, à mesma fidalguia de fachada, à fatal temeridade? Que farás ao observar, após tanto sobressalto, que Portugal adormeceu de novo, num sono ainda mais profundo? E vindo tu a saber que aquela voz, a mesma voz que te arrancou do sono numa manhã de há três mases, logo fez da tua cama o seu quartel-general mal deste costas, que farás? Não conheces o mito de Anteu, se eu to contasse agora não acreditavas nele. Nem aceitavas que assim é a condição humana, antes de vir um Hércules qualquer levantá-la do chão. E quando fizeres um dia, ao contrário, esta viagem, e fores realmente proletário, sem casa, sem trabalho,sem família, que farás tu, meu herói? Verdade é que, por uma vez, ousaste agir. Esse pouco, e algum ignoto deus, te hão-de salvar, se a salvação te basta. (Cont.)