segunda-feira, 21 de julho de 2025

As Aves 7-3

Por agora tem Gaspar que atravessar metade da cidade, vencer o dédalo de túneis e passagens, até chegar à rue de la Paix e aos balcões da companhia. Parece desolada a hospedeira, por já ter a lotação completa. Mas pior ficou Gaspar, que viu crescer em dois dias a duração da escala. Marca viagem no avião seguinte e regressa ao hotel a fazer contas.

Três coisas tem Gaspar que administrar, qual das três a mais custosa, o tempo que é por demais, o dinheiro feito pouco, e a sua curiosidade que é bastante. Não vai ser ele o primeiro a cortar em satisfações da boca. E as manhãs hão-de ser as próprias da estação, agrestes e desabridas, como se espera nestas latitudes. Ora um corpo adormecido tem já meio sustento garantido. Seguro da conclusão, passará Gaspar a prolongá-las no duvidoso aconchego dos lençóis.

É às tardes que arrisca uma aventura. A primeira começou no Jeu de Paume, onde foi encontrar o Petit Fifre, um companheiro que lhe ficou da infância, perdido numa página dum livro de francês. Gaspar vai à procura de si próprio, mais que do pequeno tocador de pífaro, e a figura é menos impressiva do que lhe guarda a lembrança. Falta-lhe vigor nas cores e a expressão é singela em demasia, isto é o que sente Gaspar, um tanto decepcionado, em questões de arte não vai além das impressões primeiras. Se por tão fracas razões a obra foi recusada numa exposição do tempo, é o que não explica este catálogo. Mas Garpar já regressou à meninice. E o que ficou a perder nesta figura, por ter esquecido a força da antiga imaginação, foi ganhá-la nos Déchargeurs de charbon, já então os mesmos que hoje são, subindo e descendo as pranchas, de balaios à cabeça, já difusos de neblina e de poeira, a alimentar as fornalhas do mundo.

Na tarde segunda foi à praça da Concórdia, onde a lâmina fatal degolou a vassalagem dos poderes absolutos. Em seu vagar subiu os Champs Elisées até à Place de l,Étoile, e chegou ao arco triunfal onde essa história toda veio desembocar. No caminho entrou numa livraria e não perdeu o seu tempo. Encontrou nela um poema dum tal Prévert, que lhe veio a múltiplos preceitos. O caso é que um soldado, certo dia, trancou o bivaque na gaiola e saiu do quartel de canário na cabeça. O gesto há-de parecer uma heresia, e o mais certo é que o seja. Porém, conforme alegou o pássaro, qualquer um pode andar enganado, e arrepiar um dia o seu caminho. Tivesse o degolado rei, é um exemplo, espíritos mais atentos às falas de certas aves, e outro galo cantaria. Não foi esse o celerado caso, diz a história. Foi-o, porém, felizmente, noutros mais pessoais e recentes, põe-se Gaspar a pensar. Muita coisa diz a arte, sem afirmar coisíssima nenhuma. E Garpar, que o não sabia, tomou aqui a primeira lição.

Já deu ao Arco do Triunfo as voltas do romeiro, que são três, e contou as batalhas todas que sublinha. E viu Almeida, onde o paiol explodiu, e a sangueira misturada na corrente da ponte velha do Côa, e o Rio Seco, e Fuentes e Alba de Tormes, e muitas outras de que nunca ouviu falar. E lembrou-se do Buçaco, e das Linhas de Torres Vedras, e doutras que aqui não vão por não serem vitoriosas. Veio-lhe à ideia a fuga para o Brasil, o governo dos ingleses, o ódio ao jacobino. E concluiu, bem ou mal, que a história de Portugal mais uma vez se enganou.

Viu proclamada a terceira república, e regressada a Alsácia ao pátrio berço, e lembrados os partisans mortos pela honra da França, mal feito fora esquecê-los quando tantos claudicaram, e os soldados da Coreia, e os caídos na Indochina, e na guerrilha da Argélia, da Tunísia e de Marrocos, e de tanto batalhar ficou esta chama acesa a um soldado ignorado, quem sabe se terá vindo duma tribo de além-mar. Foi entre todos quem mais sacrificou, se nem um nome lhe resta. (Cont.)