quarta-feira, 30 de julho de 2025

As Aves 7-5

Cá fora tem à espera um temporal desfeito, oxalá não dure muito. Mas passada assim a tarde em tais companhias, dormiu Gaspar entre sonhos de bem.aventurança e levantou-se cedo. É dia de ir ao palácio do Rei-Sol. O comboio é quente e pontual e cómodo, e Gaspar vai lendo os roteiros do turismo. Ilude alguma apreensão enquanto vê passar o comprido arrabalde, que uns patrícios seus andaram a construir e o céu pesado faz entristecer. Oxalá não venha o tempo estragar o passeio, a oportunidade não se repetirá. E era hoje o dia de partir, que vinha concertado. As finanças estão há muito em contagem minguante, queira Deus não venhamos a amargar este mimo.

Gaspar percorre a pé a avenida de acesso aos domínios do Rei-Sol. Eram há trezentos anos a sede do absolutismo, ficaram a ser-lhe símbolo depois da Revolução. Gaspar preparou-se para a visita, já sabe que, Europa fora, imitações e réplicas lhe atestaram a fama, se mesmo a Portugal chegaram ecos difusos. Mas não sabe ainda que ao percorrer a avenida está pisando o eixo das simetrias do mundo, o tal que passa pelo leito do rei, pelo centro da sua coroa, e divide alamedas e horizontes, e paisagens de lagos e montanhas, e separa em terra os rios, e estrelas no firmamento.

Já deixou para trás instalações secundárias, alojamentos e escolas de valetes, picadeiros e cavalariças, cocheiras e estrebarias, a do escudeiro-mor, a do primeiro-escudeiro. São tão vastas e pomposas que só nelas gastaria o tempo todo, bem se dizia das béstias do rei de França viverem em melhores cómodos que os príncipes da Europa. Gaspar atravessou a praça de armas e cruzou a paliçada, entrou no pátio primeiro, depois no pátio real, estreitando intimidades até ao pátio de mármore, que o não deixaram pisar. No alto da fachada desta prisão de reis ficou paralisado um relógio imponente, desde o exacto minuto em que o senhor do tempo claudicou. E em baixo, a meia altura, o varandim colonado, onde veio apresentar-se o par decapitado, quando o furor do povo o reclamou.

A visita aos interiores tem início na capela, requinte de ouros, e mármores, e rigores neo-clássicos. Depois uma enfiada de salões, palcos públicos do rei, o de Hércules, o da Abundância, os de Vénus e Diana, o de Marte, o de Mercúrio, o de Apolo que teve um trono de prata, e vendo agora este salão da Guerra, é certo que mais à frente acharemos o da Paz. Entre um e outro a Galerie des Glaces, cortada em duas pelo eixo das simetrias, e onde se enfatuavam cortesãos à espera que o rei passasse, às devoções na capela. O fulgor destes cristais, dos ouros, dos alabastros, os tesouros da pintura, das talhas, da estatuária, os lustres e os candelabros, os leques de pavão de Sèvres, os trompe-l'oeil  mentirosos, os festejos de rigor e os bailes de mascarados que a imaginação nos traz, tudo aqui nos ultrapassa a mais fértil fantasia.

Já chegámos aos aposentos da rainha, à alcova das parições reais, ao salão do Grand Couvert, à câmara dos nobres e à dos guardas, e já voltámos às cenas murais, e às madeiras embutidas, e aos tapetes e às sedas e aos brocados.

Vêm agora os privados do rei, um do leito e das insónias, um do conselho de ministros, um das perucas, um dos trajamentos, um das ceias públicas e outro da biblioteca, um do relógio astronómico e das curiosidades, este final é o dos jogos.

Já não cabemos em nós de tanta fascinação e ainda nos falta ver a ópera real, obra toda em madeiras marchetadas, que lhe emprestam a acústica perfeita. Ainda neste firmamento Apolo reina, porque é ele o deus das Artes e da Luz, e muito antes de o rei o ser um dia, foi Apolo o sol primeiro. Um delicado mecanismo levanta a plateia ao rés do palco, e assim se fez aqui muitas vezes o baile, quando melhor lugar se não achou. (Cont.)