Gaspar sai finalmente para os jardins. E tanta realidade traz nos olhos, que não lhe sobra espaço para imaginações. Mesmo amputados pela Revolução, parecem estes domínios um reino inteiro, a estender-se para lá do horizonte. Espelhos de água com figuras alegóricas, terraços e escadarias e bosques e alamedas, e jardins da Orangerie onde há plantas de Setúbal, e jogos de água com tritões de bronze, e cascatas e estátuas e fontanas, esta aqui é a de Latona, de quem nasceu Apolo, o do carro do sol. Sentindo-se ultrajada pelas línguas do povo, pediu vingança a Júpiter, que as transformou em rãs. E aqui ficaram elas para toda a eternidade, a coaxar ao vento as suas loas. Lá ao fundo começa o Grand Canal, onde já navegaram barcarolas e se travaram batalhas navais.
É impossível ver tudo. Mas Gaspar não partirá sem ir ao Trianon, onde já houve uma aldeia que um decreto real mandou desaparecer. Ficaram nas colinas dois pequenos palácios, como se mais palácios cá faltassem, e mais jardins à francesa, e um palácio belvedere, e paisagens românticas à moda de Inglaterra. Mas já galopa Gaspar aos casais da rainha, que uns arquitectos andaram a construir, para ela se espairecer dos grandes tédios da corte.
Os casinhotos são de inspiração normanda e têm tectos de colmo, à beira dum riacho. Resta o moinho, o pombal, a quinta e a leitaria, e a choupana da rainha com varandins de madeira. Tão pouco tempo a gozou, a desditosa, que Gaspar se surpreende a lamentar as razões que a história às vezes esconde. Certo rei varreu uma aldeia, mandou fazer um plácio. Deixa o palácio a rainha, volta a construir a aldeia. Não gosta do jogo, o povo, que já tem a vida dura, e corta a cabeça aos dois.E se não houver aqui quem lance a pedra primeira, a última não a lançaremos nós.
Foi tão grande a romaria como o dia, depois duma tal jornada Gaspar não se levantou. De cansaço, se não foi de exaustão, e de emoções, que não esperava tantas. Só ao fim da tarde veio à rua, em busca de um conforto para o estômago agastado. Sobram-lhe dias na escala, já lhe está faltando o ânimo, e mais ainda o dinheiro. Lança mão do telefone que o companheiro deixou. (Cont.)