De forma que nos pusemos a pensar, lá em casa já havia a experiência do meu pai, embora antiga, e à palavra dp padre juntámo-nos três, dali daquela zona. Decidimos do dia para a noite, que é a melhor forma de tomar decisões impossíveis, como é sabido. À procura dum passador foi o meu irmão mais velho ao Sabugal, que sempre foi boa terra para contrabandos. Lembro-me como se fosse hoje, a gente à espera e os dias a fugir, o facto é que a guarda já andava de focinho no ar, estranhou-lhe a presença por ali e meteu-o na cadeia durante uns dias, era assim que as coisas se faziam. Aguentou-se ele com as mentiras que pôde e lá omandaram embora, ao fim duma semana estava tudo pronto, tratámos de pedir emprestado o dinheiro da viagem e fomos ter a Quadrazais.
Ao todo éramos nove, arrancámos atrás do passador ao princípio da noite, meia hora adiante topámos com a guarda. Cada um debandou conforme pôde por aqueles cabeços da Malcata, parecíamos perdigotos assustados, eu deixei para trás o saco onde guardava um pão de quartos e a casaca, no dia seguinte a arrancada foi de vez.
Andámos então dezanove horas seguidas até uma terra espanhola chamada Valverde, sempre a rasgar a direito, e acabámos a descansar num ermo vago, agachados no mato. O passador voltou ao anoitecer e lá cruzámos a estrada um a um, sempre atrás dele, avançámos ao longo dum lameiro, havia frio, ouvia-se restolhada de cavalos. A dado ponto alcançámos um barracão no monte, donde espantámos uns porcos que lá havia, ali nos deram o primeiro pão com chocolate espanhol, ali passámos a primeira noite em cama quente.
Partimos de madrugada, quando possível por caminhos abertos do campo, bebíamos água se havia algum regato, e se aparecia um chão de areia avançávamos às arrecuas, a desenhar os passos ao contrário, não há como seguir experiências já feitas e exemplos comprovados. Enfim chegámos, numa serra, a uns fortins de cimento, por certo coisas do tempo da guerra espanhola, ali no ermo. Foi onde descansámos uma tarde, numas camas de fieitos que lá dentro havia, ficámos a saber que não éramos os primeiros a passar por ali. O grupo era de nove, e nove se mantinham, embora o meu irmão quisesse desistir logo na primeira e mais longa tirada.
Bem fez ele em se firmar nas pernas e aguentar, que agora vamos deixar de andar a pé, daqui até Madrid viajamos de carro. Somos nove os caminheiros, a esse número temos que juntar o passador, nada feito sem ele, mais o condutor que não podemos dispensar. O conjunto há-de parecer exagerado para tão singela carruagem, mas só a quem nunca se viu nestas alhadas, não é o nosso caso, no ponto a que chegámos já nada nos causa admiração. Este carro preto é único exemplar, com ele nos temos que haver, importa aqui é saber quem são os dois de menos alentado corpo, melhor se encaixarão a par, lá atrás, no cofre das bagagens.
Quem tinha dúvidas bem fará em perdê-las, pois que a Madrid chegámos, e em Madrid ficámos dois dias fechados numa garagem, a pão e chocolate. Ainda hoje estou para saber por que razão ninguém pensava em trazer-nos bebidas, se não era para evitar necessidades de aliviar o corpo, não falo já do vinho a que estas bocas estão habituadas, falo duma limonada qualquer, dum reles pirolito, da água lisa duma bica.
De Madrid viemos, de rota batida e cu tremido, com o fito em Tolosa, o carro preto a dar mostras duma afoiteza que não se adivinhava. Porém, a dado ponto, a neve começou a cair e foi mais forte. Lá encostámos à berma antes de Miranda, num desvio ali a meio do descampado, saltámos cá para fora e logo nos puseram a correr, até chegarmos a um grande barracão que lá havia. (Cont.)