A princípio falaram em francês, a tropeçar em cortesias e embaraços, mas quando se descobriram patrícios a conversa ganhou outro à-vontade. Nem de propósito, amanhã é domingo, apareça você em Saint-Denis, na rue des Peupliers, lá nos encontramos todos.
João Carrolo é dirigente da Associação Recreativa Cultural e Desportiva dos portugueses de Saint-Denis. Têm aqui este lugar de encontro, para estarem juntos, para se sentirem gente. Preparam festas, almoços, arraiais, já cá vieram artistas, já tiveram visitas de políticos. Aos domingos passam a tarde aqui, quem quiser vir, jogam às cartas, matam saudades. E Gaspar já se deu a conhecer, já fez as suas perguntas, já quis acamaradar. Já contou ao João Carrolo a sua circunstância, já explicou ao que vem. E enquanto tira de misérias a barriga, fica-se a ouvir do companheiro os motivos e as passadas que o troux em eram até França.
Eu vim do Zabro, lá para as serras da Lapa, nos começos da década de sessenta. Há-de estar a fazer anos a princípios de Março. Pouco se falava ainda em emigrar, nada daquela febre de alguns anos mais tarde, quando os homens debandaram em massa, e as aldeias, uma atrás da outra, ficaram entregues aos velhos, às crianças e às mulheres. Fui dos primeiros e lembro-me muito bem, o padre da ftreguesia era um homem como poucos. Atento às aflições do povo, foi dele o primeiro passa-palavra, havia muito trabalho a fazer em França.
Ora por França já o meu pai tinha andado em mil novecentos e trinta e tal, primeiro numa fábrica de anilinas em Lião, e mais tarde na ilha da Corsa, de machado e serrote nas unhas, a desbastar matagais. A prova é que sempre andaram lá por casa, se ainda hoje andarão, uns postais do correio já mordidos do tempo, havia umas donzelas que se punham a sonhar e mandavam-nos ao cher Benjamin, já ele tinha regressado à nossa terra, já tinha casado com a minha mãe. Lá saberiam elas o que ficaram a perder, à vista de recado tão teimoso.
Mas vida de pobre não sai do mesmo sítio, por mais voltas que o cão dê. Chegava a gente ao cabo do ano, que era a feira de Agosto, vendia, quem os tinha, gados miúdos e graúdos, comprava-se um leitão para criar, uma vitela ao meio ganho se havia padrinhos de posses, via a gente a animação dos cavalinhos a girarem à roda e deixava de pensar no resto, as girafas atrás dos leões, e os leões a perseguir as zebras riscadas sem nunca as alcançarem, era tal e qual o mesmo jogo sem fim da nossa vida. Trazia a gente para casa uma camisa nova, umas botas de pneu, uma caixita redonda de banha da cobra com que tratava a pele ardida do muito sol, no fim de pagar a renda das courelas fechava-se o ano sempre no mesmo ponto em que tinha começado, uma miséria aflita, olha hoje um homem para trás e não acredita que um mundo assim já existiu.
O Salazar punha o povo a cantar a casinha portuguesa, mas o pão e o vinho sobre a mesa só existiam na letra da cantiga, não havia casa nenhuma, nem estaria para haver. O país existia para uso duns quantos figurões inchados de prosápia, o resto eram burros de carga, não havia entre a gente e os bichos fundamental diferença, de vida e passadio, quem quisesse fugir à miséria só tinha um rumo a tomar, era procurar uma terra melhor. (Cont.)