terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Madrugada redentora

Ninguém constrói o seu templo com barro dos vizinhos. É assim que Gouveia celebra o centenário de Virgílio Ferreira, que nasceu na aldeia serrana de Melo.
V. Ferreira deixou à literatura dois romances de épocas diferentes: a Manhã Submersa, inicial, de que o Lauro António fez um belo filme, e a Aparição, mais tardia, que tem lugar em Évora. O resto é um bom exemplo de umbigo inflacionado, agindo em contra-corrente, com escritos múltiplos que moram no bairro da literatura e não no são (a Conta-Corrente, a Sandra, que sei eu?): os existencialistas, o nouveau-romain, o Robbe-Grillet, indiferentes todos ao naufrágio do povo, cujos heróis verdadeiros morriam torturados nos aljubes da pide, em luta pelas oito horas no latifúndio e pela dignidade.
Eu oiço os conferencistas com muita tolerância. Rio-me do mundo e dos intelectuais que se dirigem aos leitores lendo textos maçudos e prolixos, com dicções inaudíveis e improvisadas em que se perde metade da mensagem. E acabo a restaurar-me com um almocinho no Júlio de Gouveia, que há 50 anos era bandeira da gastronomia serrana na feira popular de Entrecampos. 
Ainda hoje guarda nas paredes do estanco as fotos das chaimites do Salgueiro Maia, numa madrugada redentora que aí houve. Era forçoso que houvesse!