"O que tiveres a dizer, (ou mais exactamente aquilo que não podes deixar de dizer!), é a primeira coisa fundamental. A segunda coisa fundamental é o modo como o dizes.
E não há mais segredo nenhum na literatura."
E não há mais segredo nenhum na literatura."
Já foi aqui dito um dia, e ainda é verdadeiro. Para não dizer que o é cada vez mais.
«Certa vez, no Norte de Angola, debaixo dum calor infernal, o então tenente-coronel António de Spínola , na companhia do capitão Leandro Carraça, do furriel António Mendes e do soldado Jacinto Marta, ordenou a este último que parasse o jipe. Por cima das densas copas das árvores adivinhava-se um céu de chumbo e, apesar de serem três e meia da tarde, seguiam de faróis acesos. O soldado Jacinto Marta obedeceu prontamente à ordem, e o tenente-coronel António de Spínola apeou-se num salto aparatoso, sem, no entanto, deixar cair o monóculo e o pingalim. Depois virou-se para o capitão Leandro Carraça e para o furriel António Mendes e pediu-lhes que fizessem o favor de o seguir.
O capitão Leandro Carraça, no tom ponderado que lhe era habitual, fez notar que talvez não fosse boa ideia o soldado Jacinto Marta ficar ali sozinho e sugeriu que o furriel António Mendes permanecesse, igualmente, junto da viatura. Argumentou, ainda, mas agora num tom irónico que não lhe era nada habitual, que dois oficiais bastariam para resolver o assunto.
Tanto o furriel António Mendes como o tenente-coronel António de Spínola perceberam que aquelas últimas palavras do capitão Leandro Carraça, realçadas pelo tom irónico com que haviam sido proferidas, não significavam a tentativa de desvalorizar o assunto que estava por resolver, bem pelo contrário, mas eram o resultado de um sentimento agudo de culpa, fruto de uma consciência em permanente observância e autocensura. Porque, sempre que algo de errado se passava com um dos seus homens, o capitão Leandro Carraça sentia-se imediatamente o principal responsável. Pior: o único culpado.
O tenente-coronel António de Spínola conhecia muito bem o capitão Leandro Carraça e admirava-o, também, por essa característica. Esteve prestes a sugerir-lhe que fosse resolver o assunto sozinho, mas temeu ser mal interpretado. Desapareceram os dois no meio do mato.
Dentro do jipe, ansioso por usufruir da liberdade que lhe conferia a momentânea ausência dos dois oficiais, o soldado Jacinto Marta aproximou-se do furriel António Mendes e perguntou-lhe baixinho, com a boca quase colada ao ouvido, se achava que o tenente-coronel António de Spínola, antes de se pôr a mijar, tirava as luvas. (...)
O soldado Jacinto Marta perguntou ao furriel António Mendes se achava que o tenente-coronel António de Spínola e o capitão Leandro Carraça iriam conseguir convencer o sargento Raul Figueira a descer da árvore e a voltar para o aquartelamento. O furriel António Mendes respondeu que o tenente-coronel António de Spínola era um militar muito persuasivo e o capitão Leandro Carraça um homem bom, e que essa duas qualidades juntas talvez conseguissem demover o sargento Raul Figueira da ideia de ficar a viver em cima duma árvore até a guerra acabar. Além disso, já tinham passado três dias, e o homem devia estar cheio de sede e de fome. (...)
As bátegas de água fustigavam-nos violentamente, e o caminho de terra parecia, agora, um autêntico rio de lama. O soldado Jacinto Marta apresentava notórias dificuldades em controlar a viatura, e nem a presença de um dos mais altos graduados de toda a hierarquia militar portuguesa o inibia de interpelar, alternadamente, e com igual devoção, S. Jerónimo, Nossa Senhora da Conceição e a cona da tia Alice. (...)»
«Certa vez, no Norte de Angola, debaixo dum calor infernal, o então tenente-coronel António de Spínola , na companhia do capitão Leandro Carraça, do furriel António Mendes e do soldado Jacinto Marta, ordenou a este último que parasse o jipe. Por cima das densas copas das árvores adivinhava-se um céu de chumbo e, apesar de serem três e meia da tarde, seguiam de faróis acesos. O soldado Jacinto Marta obedeceu prontamente à ordem, e o tenente-coronel António de Spínola apeou-se num salto aparatoso, sem, no entanto, deixar cair o monóculo e o pingalim. Depois virou-se para o capitão Leandro Carraça e para o furriel António Mendes e pediu-lhes que fizessem o favor de o seguir.
O capitão Leandro Carraça, no tom ponderado que lhe era habitual, fez notar que talvez não fosse boa ideia o soldado Jacinto Marta ficar ali sozinho e sugeriu que o furriel António Mendes permanecesse, igualmente, junto da viatura. Argumentou, ainda, mas agora num tom irónico que não lhe era nada habitual, que dois oficiais bastariam para resolver o assunto.
Tanto o furriel António Mendes como o tenente-coronel António de Spínola perceberam que aquelas últimas palavras do capitão Leandro Carraça, realçadas pelo tom irónico com que haviam sido proferidas, não significavam a tentativa de desvalorizar o assunto que estava por resolver, bem pelo contrário, mas eram o resultado de um sentimento agudo de culpa, fruto de uma consciência em permanente observância e autocensura. Porque, sempre que algo de errado se passava com um dos seus homens, o capitão Leandro Carraça sentia-se imediatamente o principal responsável. Pior: o único culpado.
O tenente-coronel António de Spínola conhecia muito bem o capitão Leandro Carraça e admirava-o, também, por essa característica. Esteve prestes a sugerir-lhe que fosse resolver o assunto sozinho, mas temeu ser mal interpretado. Desapareceram os dois no meio do mato.
Dentro do jipe, ansioso por usufruir da liberdade que lhe conferia a momentânea ausência dos dois oficiais, o soldado Jacinto Marta aproximou-se do furriel António Mendes e perguntou-lhe baixinho, com a boca quase colada ao ouvido, se achava que o tenente-coronel António de Spínola, antes de se pôr a mijar, tirava as luvas. (...)
O soldado Jacinto Marta perguntou ao furriel António Mendes se achava que o tenente-coronel António de Spínola e o capitão Leandro Carraça iriam conseguir convencer o sargento Raul Figueira a descer da árvore e a voltar para o aquartelamento. O furriel António Mendes respondeu que o tenente-coronel António de Spínola era um militar muito persuasivo e o capitão Leandro Carraça um homem bom, e que essa duas qualidades juntas talvez conseguissem demover o sargento Raul Figueira da ideia de ficar a viver em cima duma árvore até a guerra acabar. Além disso, já tinham passado três dias, e o homem devia estar cheio de sede e de fome. (...)
As bátegas de água fustigavam-nos violentamente, e o caminho de terra parecia, agora, um autêntico rio de lama. O soldado Jacinto Marta apresentava notórias dificuldades em controlar a viatura, e nem a presença de um dos mais altos graduados de toda a hierarquia militar portuguesa o inibia de interpelar, alternadamente, e com igual devoção, S. Jerónimo, Nossa Senhora da Conceição e a cona da tia Alice. (...)»