Releio o Ensaio de José Saramago. E pasmo.
Deste trabalho de Sísifo, da violência que encerra, da sua profunda humanidade, e da actualidade visionária. Entre outras coisas, a literatura é isto.
«(...) Atravessaram uma praça onde havia grupos de cegos que se entretinham a escutar os discursos doutros cegos, à primeira vista não pareciam cegos nem uns nem outros, os que falavam viravam inflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamavam-se ali os princípios fundamentais dos grandes sistemas organizados, a propriedade privada, o livre câmbio, o mercado, a bolsa, a taxação fiscal, o juro, a apropriação, a desapropriação, a produção, a distribuição, o consumo, o abastecimento e o desabastecimento, a riqueza e a pobreza, a comunicação, a repressão e a delinquência, as lotarias, os edifícios prisionais, o código penal, o código civil, o código de estradas, o dicionário, a lista de telefones, as redes de prostituição, as fábricas de material de guerra, as forças armadas, os cemitérios, a polícia, o contrabando, as drogas, os tráficos ilícitos permitidos, a investigação farmacêutica, o jogo, o preço das curas e dos funerais, a justiça, o empréstimo, os partidos políticos, as eleições, os parlamentos, os governos, o pensamento convexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a morte da palavra. (...)»
[Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago, Ed. Caminho, Lisboa, 1995, pág. 295]