(Cont.)
O maçaricão mudou de direcção e as tarambolas
seguiram-no, embora só as que vinham logo atrás dele pudessem ver que ele
rodava para Leste. Acumulada entre as rémiges, a neve colava-se-lhes nas asas.
E estas, que ainda há poucos minutos reagiam prontamente às flexões e
distensões dos músculos do peito, eram agora pesadas e rígidas. Rodavam no ar
como remos, desperdiçavam energia, empurravam o ar para baixo em vez de o
aspirarem, de modo a provocar a corrente indispensável ao voo. A sua velocidade
diminuiu até ficarem quase imóveis, um bando desordenado e confuso, a cerca de
mil e quinhentos metros sobre o mar. Então o maçaricão dirigiu-se mais para Leste.
Começou lentamente a descer e, através da gravidade, ganhou a velocidade que as
rémiges encharcadas não podiam atingir. O andamento era agora normal, mas
tinham que perder altitude para o manter. Do deserto cinzento, lá em baixo, o
mar crescia para eles.
O
maçaricão foi descendo lenta e progressivamente, adaptou o ângulo de ataque das
asas à pressão da corrente de ar, de modo a poderem manter a velocidade com um
mínimo de perda de altitude. Às vezes abrandavam os turbilhões de neve e por
momentos era possível manter a horizontal. Mas logo voltava a neve, de novo
mais densa, as asas ficavam pesadas, e o maçaricão tinha que voltar a descer.
As
costas da Nova Escócia e da Nova Inglaterra estavam já a várias horas de
distância, atrás do nevão impenetrável. À sua frente, quem sabe se apenas a
alguns minutos, estava a atmosfera mais quente e mais tranquila, para lá da
tempestade. Porém, mesmo depois de ultrapassarem a frente fria, tinham que
continuar a voar na direcção do mar sem fim, para evitar as nuvens geladas que
agora os empurravam impiedosamente, cada vez mais perto da crista das ondas. O
maçaricão sabia disso, não por reflexão mas por comportamento instintivo. Por
uma vaga inspiração que lhe dizia também estar algures uma fêmea à sua espera,
quando os musgos e os líquenes da tundra ficassem verdes de novo, e o tempo do
acasalamento voltasse.
O
maçaricão possuía músculos peitorais e tendões bem mais fortes do que as
pequenas tarambolas. Mas agora doíam. Mesmo a ele, custava-lhe um
extraordinário dispêndio de energia vencer a dificuldade trazida pela neve
incrustada nas asas. Uma vez que perdiam altitude, atingiram de novo as camadas
de ar inferiores, instáveis e agitadas. A formação rompeu-se, mas as aves
continuaram juntas, fazendo-se ouvir por altos gritos. Cada ave estava sozinha
num mundo de vento e neve, e só este gorjeio fremente as ligava umas às outras.
Durante
longo tempo voaram no ar frio, sem poderem observar a rota. O maçaricão
procurou manter a altitude, até os músculos do peito e as fibras todas do corpo
lhe vibrarem de dor e de cansaço. Ao gorjeio das tarambolas juntou-se em breve
um assobio agudo, cada vez mais forte. Era o ruído da neve estalando na água.
Então o
maçaricão conseguiu ver através da cortina branca. Vagas de crista prateada apareciam
à sua frente, cresciam espumando e desapareciam lá atrás. O nevão abrandou e as
tarambolas podiam ver-se de novo. Voavam ao acaso, atrás do maçaricão, e as
mais fracas iam ficando para trás. Estavam mais próximas da água, pois tinham
que sacrificar ainda mais altitude para poderem acompanhar as mais fortes. A
neve colava-se-lhes às pontas das asas. E, mal se derretia com o calor do
corpo, logo outra se acumulava.
(Cont.)