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Monotonamente
sucederam-se noites de voo sem fim e dias inteiros a comer, nas águas paradas de
pântanos. Atrás dos viajantes, a luz esverdeada do Norte era cada vez mais
fraca, e os seus peitorais ficavam cada vez mais fortes. Incansavelmente voavam
todas as noites até à alvorada. Nos pântanos salgados da baía de James havia
alimento abundante. E ficaram aqui muitos dias, empanturrando-se com os
minúsculos bichos do lodo, até finalmente o Sul os chamar de novo. O maçaricão
conduziu-os directamente para Leste. Dirigiram-se para o Lavrador, sobre as
alturas do Quebec, na direcção dos recifes de gneisse do golfo de São Lourenço.
A madrugada
seguinte apareceu fria e nebulosa, e no ar havia um penetrante cheiro a sal. As
aves notaram-no e o maçaricão guiou-as em frente, até que surgiu a aurora de um
dia cinzento e sem sol. O ar aqueceu um pouco, os bancos de nevoeiro
dissiparam-se, e atrás dos farrapos de nuvens viam-se, aqui e ali, manchas
acastanhadas. Era o planalto costeiro, rochoso e escalvado. O cheiro a sal
tornou-se mais forte e o maçaricão sabia que se aproximavam do mar. A névoa
tornou-se de novo mais espessa. Mas ele manteve o rumo, embora à sua volta tudo
fosse impenetravelmente branco. De repente chegaram-lhe aos ouvidos o estrondo
da rebentação e os gritos das gaivotas. O maçaricão começou a descer em voo
planado. Com glissagens ocasionais, controlou a velocidade de descida. As
tarambolas rompiam a formação mas seguiam-no. Nivelaram o voo alguns metros
acima da água, tomaram a direcção das ondas e voaram sobre as cristas, até que
as escarpas surgiram da neblina. Na sua frente erguia-se uma imensa parede
rochosa. O maçaricão voara às cegas durante várias horas, mas falhara a costa
apenas por um quilómetro.
As aves
ganharam altitude, deslizaram sobre as falésias e poisaram. Lá estavam por todo
o lado os ramos dos arandos, não muito diferentes das urzes. Em certos locais,
os frutos purpúreos e carnudos eram tão grandes que ocultavam a folhagem, e as
aves começaram imediatamente a comer. Um vento frio chegava do mar e alguns
chuviscos caíram sobre elas. Após uma hora pararam de comer e encostaram-se
umas às outras. Voltaram as cabeças contra o vento, para que a chuva deslizasse
sobre as penas e escorresse pela cauda.
Agora tinham
apenas que comer durante duas semanas e acumular gordura para o longo voo do
Atlântico, até à América do Sul. Agosto ia a meio e o Verão no Lavrador quase
tinha passado. As noites geladas alternavam com dias carregados de nevoeiro.
Elas comiam as bagas dos arandos, comiam e comiam, até as pernas e os bicos e
as penas e os excrementos ficarem manchados de sumo púrpura. Quando por vezes a
névoa se dissipava e aparecia o sol, o que era raro, voavam até à praia, na
maré baixa, e procuravam caracóis e camarões.
Todos os
dias deparavam com pelo menos um bando de tarambolas-douradas. O maçaricão deixava então de
procurar alimento, e passava uma vista de olhos pelo bando, à procura dum
companheiro da espécie. Mas não aparecia nenhum, e do género das narcejas
apenas as tarambolas-douradas faziam caminho por aqui. Havia, porém, muitas
outras aves, sobretudo gaivotas, que gritavam roucas na neblina. Em frente da
costa passavam eider-reais, em infindáveis bandos pretos e brancos. As
tordas-mergulheiras e os araus, com as suas asas curtas e o voo pesadão,
grasnavam e brigavam ainda nos picos da falésia, onde tinham criado as
ninhadas.
Nesta
inactividade, o maçaricão e as tarambolas acumularam gordura muito rapidamente.
Os seus peitos ficaram outra vez redondos e macios, da gordura armazenada sobre
os poderosos músculos. Agosto ia no fim, e de novo a antiga inquietação se
apoderou deles. Quando o tempo aclarava e o vento era favorável, milhares de
tarambolas levantavam voo e dirigiam-se para Sul, sobre o golfo de São
Lourenço, na direcção do imenso Atlântico. Mas o maçaricão esperava ainda,
qualquer coisa o refreava. O seu pequeno cérebro podia senti-la, embora não a
soubesse definir. Vagamente considerava apenas que os maçaricões-esquimós
tinham que seguir este caminho, no regresso da tundra.
(Cont.)