sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O último maçaricão-esquimó 12

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            Monotonamente sucederam-se noites de voo sem fim e dias inteiros a comer, nas águas paradas de pântanos. Atrás dos viajantes, a luz esverdeada do Norte era cada vez mais fraca, e os seus peitorais ficavam cada vez mais fortes. Incansavelmente voavam todas as noites até à alvorada. Nos pântanos salgados da baía de James havia alimento abundante. E ficaram aqui muitos dias, empanturrando-se com os minúsculos bichos do lodo, até finalmente o Sul os chamar de novo. O maçaricão conduziu-os directamente para Leste. Dirigiram-se para o Lavrador, sobre as alturas do Quebec, na direcção dos recifes de gneisse do golfo de São Lourenço.
            A madrugada seguinte apareceu fria e nebulosa, e no ar havia um penetrante cheiro a sal. As aves notaram-no e o maçaricão guiou-as em frente, até que surgiu a aurora de um dia cinzento e sem sol. O ar aqueceu um pouco, os bancos de nevoeiro dissiparam-se, e atrás dos farrapos de nuvens viam-se, aqui e ali, manchas acastanhadas. Era o planalto costeiro, rochoso e escalvado. O cheiro a sal tornou-se mais forte e o maçaricão sabia que se aproximavam do mar. A névoa tornou-se de novo mais espessa. Mas ele manteve o rumo, embora à sua volta tudo fosse impenetravelmente branco. De repente chegaram-lhe aos ouvidos o estrondo da rebentação e os gritos das gaivotas. O maçaricão começou a descer em voo planado. Com glissagens ocasionais, controlou a velocidade de descida. As tarambolas rompiam a formação mas seguiam-no. Nivelaram o voo alguns metros acima da água, tomaram a direcção das ondas e voaram sobre as cristas, até que as escarpas surgiram da neblina. Na sua frente erguia-se uma imensa parede rochosa. O maçaricão voara às cegas durante várias horas, mas falhara a costa apenas por um quilómetro.
            As aves ganharam altitude, deslizaram sobre as falésias e poisaram. Lá estavam por todo o lado os ramos dos arandos, não muito diferentes das urzes. Em certos locais, os frutos purpúreos e carnudos eram tão grandes que ocultavam a folhagem, e as aves começaram imediatamente a comer. Um vento frio chegava do mar e alguns chuviscos caíram sobre elas. Após uma hora pararam de comer e encostaram-se umas às outras. Voltaram as cabeças contra o vento, para que a chuva deslizasse sobre as penas e escorresse pela cauda.
            Agora tinham apenas que comer durante duas semanas e acumular gordura para o longo voo do Atlântico, até à América do Sul. Agosto ia a meio e o Verão no Lavrador quase tinha passado. As noites geladas alternavam com dias carregados de nevoeiro. Elas comiam as bagas dos arandos, comiam e comiam, até as pernas e os bicos e as penas e os excrementos ficarem manchados de sumo púrpura. Quando por vezes a névoa se dissipava e aparecia o sol, o que era raro, voavam até à praia, na maré baixa, e procuravam caracóis e camarões.
            Todos os dias deparavam com pelo menos um bando de tarambolas-douradas. O maçaricão deixava então de procurar alimento, e passava uma vista de olhos pelo bando, à procura dum companheiro da espécie. Mas não aparecia nenhum, e do género das narcejas apenas as tarambolas-douradas faziam caminho por aqui. Havia, porém, muitas outras aves, sobretudo gaivotas, que gritavam roucas na neblina. Em frente da costa passavam eider-reais, em infindáveis bandos pretos e brancos. As tordas-mergulheiras e os araus, com as suas asas curtas e o voo pesadão, grasnavam e brigavam ainda nos picos da falésia, onde tinham criado as ninhadas.

            Nesta inactividade, o maçaricão e as tarambolas acumularam gordura muito rapidamente. Os seus peitos ficaram outra vez redondos e macios, da gordura armazenada sobre os poderosos músculos. Agosto ia no fim, e de novo a antiga inquietação se apoderou deles. Quando o tempo aclarava e o vento era favorável, milhares de tarambolas levantavam voo e dirigiam-se para Sul, sobre o golfo de São Lourenço, na direcção do imenso Atlântico. Mas o maçaricão esperava ainda, qualquer coisa o refreava. O seu pequeno cérebro podia senti-la, embora não a soubesse definir. Vagamente considerava apenas que os maçaricões-esquimós tinham que seguir este caminho, no regresso da tundra.
(Cont.)