Ainda de Ruben A., obra citada, espaço e tempo idênticos.
(...) Na sociedade portuguesa há um ciúme indescritível perante a coragem e perante a cultura. Que um dos seus membros se liberte pelo espírito ou pelo seu valor humano é o maior insulto que eles, atrasados culturais, julgam que se lhes pode fazer. Sentem-se ofendidos, reagem de certo modo com maledicência, uma vez que não tendo grandes amores nem grandes ódios oferecem apenas o mesquinho da perseguição, fechando as casas, achando as pessoas uns pesos, ou votando a um ostracismo aqueles três ou quatro - em cada década só há também três ou quatro aves migradoras - bodes expiatórios da purga mental da sociedade, ancorados para toda a vida a um inferno. (...)
Não compreendem, porque está fora do seu alcance, o sentido de plenitude contemplativa que paira em seres semelhantes, mas de idioma mais delicado. O dinheiro move-os, e não só o dinheiro mas também o agradável de comer, beber, dormir, fornicar, passear os dias atrás dos dias e ir a enterros à espera resignada do próprio enterro. Uns enriquecem mais, outros trabalham nas companhias do gás, de seguros e muito poucos em grémios e associações corporativas. São os cadáveres adiados que procriam, de que fala o genial Pessoa.
Apenas uma excepção: se algum rico prevarica, basta a simples razão de ser rico, neste caso bastante rico, para ter a gradual aceitação de qualquer acto julgado menos bem. Os ricos podem fazer limites à moral, podem impor a moral que criaram, erguem a sua moral à base da sociedade que os procura. Os escândalos que provocam são pequenas flatulências de ligeiro efeito, para pouco depois terem à roda o enxame de insectos nocturnos encostados à lâmpada que os ilumina de whisky, cartas de jogar e remotos empregos de conto e quinhentos. (...)