Gravo obras para invisuais, na Sonora de S. Lázaro, e não escondo o prazer que isso me dá. Mas prefiro um embondeiro a enfeitar a paisagem, às mil páginas impressas no seu tronco, mastigado em pasta de papel. Sobretudo se ele é gasto na impressão de impressões, dos mil nadas de meninices perdidas, ou de memórias passadas que o mundo desmerece.
Ainda assim topo com páginas que não conheceria doutro modo e era uma pena perder. Ajudam a entender o real que nos cerca, e resiste a entrar-nos na cabeça. Como esta, de Ruben A., O Mundo à Minha Procura I, edição de 1966. Na Quinta do Campo Alegre, cidade do Porto, classe A.
(...) É uma sociedade onde os homens vivem na pedra lascada, caçando de arpão, fazendo lume no friccionar de duas pedras e trazendo a tanga remendada de peles ainda das caçadas de África. (...) E é uma sociedade onde as mulheres não precisam de ser heróis, basta-lhes dar à luz, fazer um pouco de cozinha e coabitar, em muitos casos, até aos quarenta anos, idade em que as mulheres cultivam, sem altivez ou imaginação, a pequena intriga de pulga e o gregário feminino motivado pelos maridos que as deixaram penduradas em casa, junto ao cabide da impaciência. Os homens satisfazem-se, as mulheres bastam-se, os cães rodeiam a cidade e as cadelas aluadas uivam de tantos mortos com vida. Em cima dos beirais a gataria entretém-se no assim mesmo. E as mulheres murcham à nascença, sem liberdade, sem a iniciativa que apenas ganham quando caducas, na idade em que já as esperanças de alegria e felicidade se rasparam para os filhos ou netos. O homem, tendo tirado em Portugal, por instinto de defesa do adultério, a iniciativa e a liberdade à mulher, secou-a por dentro e, no seu egoísmo, querendo evitar a desonra, o que por vezes consegue, vai em contrapartida procurar no café ou em reuniões de homens a expressão da sua personalidade viril. (...)
A mulher, deixada ao abandono desde pequena, primeiro pela liberdade coarctada, depois pelo casamento e caprichos do marido, vê-se a braços com uma tragédia em que aguenta estoicamente, por convenção de usos e costumes, o sacrifício da sua vida ao ranço familiar. (...) E se acaso na vida portuguesa uma mulher tenta evitar a pouca-vergonha, incluir-se no sério da sua própria personalidade, (...) o mundo escorraça-a, a sociedade deita-lhe a língua de fora, aceitando e convidando em contrapartida para suas casas quem tem as mais íntimas ligações sexuais com os convidados sentados à mesma mesa, quando não entre os donos da casa e os concubinos.
Mas se uma mulher é séria, se dá o alerta da sua infelicidade, o mundo raro a compreende, extorquindo-lhe as básicas qualidades de heroína que ela precisava de ter para se libertar de anos e anos de frustração, de frustração na cama, frustração ao almoço, frustração às tardes, mortificação a seguir e aniquilamento parcial, excepto do corpo que se move e até às vezes se excita, onde o calendário é cumprido segundo os preceitos da Era cristã. (...)
De forma que é preciso uma coragem indómita para a mulher sair da jaula, sair com a dignidade de quem esteve prisioneiro anos sem conta, e por essa mesma razão está apta a viver só, base humana, verdadeira, para a vida em companhia. Só aqueles que aprenderam a estar sós, que engoliram o fel da solidão, estão preparados de corpo e alma para sentir o feliz da vida conjugada. (...)
Mais de meio século decorreu, já muita coisa mudou. Mas nós ainda não entendemos porque é que a sociedade moderna demora tanto a chegar. Cobiçamos exemplos lá de fora, mas hibernamos cá dentro!