segunda-feira, 21 de abril de 2014

O último maçaricão-esquimó 32

(Cont.)
        Voaram durante quatro horas. Finalmente poisaram trezentos quilómetros terra adentro, num planalto acidentado. Aqui juntaram-se pela primeira vez a outras aves de arribação, que iam ao encontro da Primavera na América do Norte. Bandos inteiros de tangarás, tordos e piscos procuravam alimento afanosamente, nos vales arborizados. Tinham que armazenar energias para os longos voos nocturnos. Nas altas pradarias, os maçaricões encontraram bandos de narcejas e de estorninhos. Mas não se ouvia qualquer canto. Isso só aconteceria na reserva de criação, e, para a maior parte deles, ela distava ainda mais de três mil quilómetros.
            Nas encostas em declive havia gafanhotos por todo o lado, nelas pastavam grandes rebanhos de carneiros. O capim estava tosado e rente, por isso era fácil encontrar os insectos. Os maçaricões comeram até terem os papos e os estômagos cheios. E ao escurecer milhares de aves partiam. Não podiam ver-se na escuridão, salvo quando uma delas riscava o disco da lua, como um traço de sombra. Mas ouviam-se constantemente os seus gritos ligeiros. Porém os maçaricões não tinham pressa, pois no Árctico era ainda inverno, e aqui podiam acumular gordura para o caminho até à reserva.
            Esperaram uma semana, comeram muito e voavam cada dia um pouco mais para Norte. Os seus corpos ficaram outra vez nédios e redondos, e agora, de novo com forças, ardia neles a febre do acasalamento. No princípio da semana atingiram a ponta da península de Yucatán. Oitocentos quilómetros a Norte, do outro lado do golfo do México, ficavam os pântanos da costa da Louisiana e do Texas, atrás dos quais se estendiam, quase até ao Árctico, as pradarias sem fim.
 O CORREDOR DA MORTE

           ... Mas pior que tudo era a carnificina, quando as aves, na Primavera, atravessavam o golfo do México, e se deslocavam em bandos pelas planícies norte-americanas.
            Estes bandos enormes recordavam aos habitantes das pradarias os pombos-torcazes, e por isso os maçaricões foram chamados “pombos da pradaria”. Voavam aos milhares, em quantidades tais que os bandos mediam às vezes mil metros de comprimento por cem de largura. Quando poisavam, cobriam quarenta a cinquenta acres de solo. A matança era nesse tempo uma coisa inimaginável. Vinham caçadores de Omaha, no Nebraska, e abatiam as aves sem piedade. Abatiam-nas literalmente às carradas. As aves mortas eram mesmo empilhadas em carros abertos, que chegavam a precisar de taipais laterais. Quando os bandos eram particularmente numerosos, e os caçadores dispunham de munições em abundância, os carros enchiam-se depressa. Despejavam-se então carregamentos inteiros na pradaria. As aves ficavam ali em pilhas enormes, como se de um monte de carvão se tratasse. Deixavam-nos a apodrecer, e os caçadores enchiam os seus carros com novas vítimas.
            Tal carnificina só era possível pela dimensão dos bandos e pela mansidão das aves. Por cada tiro caíam dúzias delas ao chão. Certa vez um caçador abateu vinte e oito, com um único tiro de uma velha escopeta de carregar pela boca. E do bando que continuou a voar caíram ainda algumas aves mortas, nos mil metros seguintes. Voavam tão cerradas que era quase impossível atirar-lhes uma pedrada sem atingir uma delas...
            Ao lado dos muitos fuzileiros que abatiam estas aves para consumo próprio ou pelo prazer de matar, havia caçadores profissionais, que abasteciam os mercados e perseguiam os bandos sistematicamente...
            Através de binóculos, os caçadores observavam a progressão do voo... Qualquer um podia aproximar-se das aves poisadas até uma distância de vinte e cinco ou trinta metros. Uma vez aí, os caçadores esperavam que elas se colocassem na melhor posição de fogo, após o que era disparada a primeira salva. Desorientadas, as aves levantavam voo e descreviam um par de círculos no ar, oferecendo novas oportunidades de tiro. Chegavam, por vezes, a poisar no mesmo local, e este procedimento repetia-se. Com uma arma de tiro semiautomático, um certo senhor Wheeler abateu de uma vez trinta e sete aves. Ocasionalmente podia observar-se pelos binóculos que o bando tinha poisado quatro ou cinco quilómetros mais adiante. A cavalo ou de carro, os caçadores dirigiam-se rapidamente ao seu encontro, e continuavam a chacina...
            Nos anos oitenta, os efectivos de maçaricões diminuíram rapidamente...

sábado, 19 de abril de 2014

Abril

Salgueiro Maia ao Panteão, seus canalhas!

Cronistas 9

«Na Europa, o mundo urbano em ascensão, o contacto/confronto com outras civilizações e a revolução das mentalidades, operada por uma pequena minoria de alfabetos e letrados, que traduziam e liam os textos da Antiguidade grega e latina, proporcionavam, na cristandade ocidental, o renascimento da vida colectiva, das artes e da cultura.
O italiano Pico de la Mirandola colocava o homem no centro do Universo. (...) O português João de Barros em 1532 escrevia: Só os homens foram dotados de livre arbítrio, "sem haver entre eles alguma diferença de uns precederem os outros".
A pintura desnudava o corpo, inseria-o na natureza e no espaço doméstico. A Vénus de Botticelli elevava-se sobre a água, despida e inocente. Miguel Ângelo "criava" Deus, o mundo e o homem, numa abóbada de corpos nus. (...) A arquitectura desenvolvia, a partir das técnicas romanas, uma nova distribuição das superfícies. (...)
Maquiavel estudava a realidade política e social na sua verdade imediata, sem recorrer à Providência nem à moral. (...) Erasmo dava curso às críticas que, de todo o lado, caíam sobre a Igreja, pelos escândalos dos cardeais e dos papas. Em 1527, quando as tropas de Carlos V saquearam Roma, mataram bispos e prenderam o papa e os cardeais. (...)
Portugal, a Espanha e a Itália estarão no centro da Contra-Reforma. Teólogos portugueses participaram activamente na reformulação da doutrina saída do Concílio de Trento. A Inquisição, que se distinguira em Espanha no final do séc. XV, pela ferocidade, entrava em Portugal e na Itália. A chamada "heresia judaica" e o pensamento criador serão as vítimas maiores da inquisição portuguesa.
Com a chegada do ouro e da prata dos outros continentes, os alimentos e as mercadorias subiram de preço. A carestia e a inflação aumentavam o número de pobres. Era necessária uma sociedade mais justa, escrevia o inglês Tomás Moro.(...)
Em 1520 Tomás Munzer pregava a necessidade de uma nova ordem social e uma religião sem padres. Em 1524 as revoltas de camponeses rebentaram por toda a Alemanha. (...)
Os hispânicos tinham descoberto a América, aberto o caminho marítimo para a Ásia e provado que a Terra era redonda. O comércio ligava agora por mar os vários continentes, multiplicava o volume e a qualidade das mercadorias. Crescia o fabrico e o comércio das armas, principalmente das armas de fogo. Leonardo inventava máquinas que só encontrariam forma na época contemporânea. (...)
As cidades italianas estavam na vanguarda da tecnologia e das artes. Atraíram a cobiça da França e de Espanha. O imperador Cralos V alimentou o sonho de se tornar imperador católico universal. (...) Em 1527 os seus exércitos saqueavam Roma. (...) Em 1556, o imperador católico, travado pelos exércitos luteranos e pelos de França, abdicava e dividia os seus estados: a Alemanha ficava para o seu irmão Fernando de Habsburgo, e a Espanha, a Flandres, a Itália e o império espanhol para o seu filho Filipe II.
O comércio regional e intercontinental utilizava cada vez mais a letra de câmbio, o crédito e os seguros, mas os teólogos domínicos da escola de Salamanca consideravam que, se a arte mercatória se dirigisse ao lucro, era desonesta por si mesma. Na segunda metade do século, a pequena Holanda, que punha em ciência a navegação, o crédito e a guerra, resistia à feroz repressão de Filipe II e projectava-se como grande potência marítima. (...)
Portugal, com pouco mais de um milhão de habitantes, espalhava-se por três continentes: a África, a América e sobretudo a Ásia. Desviava em boa parte a pimenta da rota do Levante para a rota do Cabo. (...) A rota do Cabo ligou os três oceanos e transportava riquezas de todo o mundo. A sua abertura ficou assinalada, a par e passo, por assaltos a tiro e a espada, pelos corpos dos náufragos, pelo sacrifício dos marinheiros, livres e escravos, pelo comércio, a conquista, a pirataria e o sangue.»
(António Borges Coelho, História de Portugal, Vol.IV)

O último maçaricão-esquimó 31

(Cont.)
         Voaram hora após hora com velocidade estável, mantendo constante o ritmo esgotante de três a quatro batidas por segundo. O cintilar do sol sobre a água foi enfraquecendo, e desapareceu completamente ao atingir o zénite. O mar tornou-se mais azul. Então o sol descaiu para Oeste e a cintilação voltou. Oitocentos metros abaixo deles brilhavam as cristas das ondas, e o ar aqueceu ainda mais. Desde que a costa da América do Sul desaparecera na escuridão da última noite, nada alterara a monotonia e a desolação do mar, a não ser, aqui e ali, um albatroz, que planava com as suas asas poderosas e imóveis. Os maçaricões voavam infalivelmente para Norte, sem se desviarem do rumo. Os seus cérebros estavam mais bem compensados, em relação às forças de orientação da terra, do que a bússola mais sensível.
            O macho, que seguia na frente e tinha que vencer maior resistência do que a fêmea, sofria de particular cansaço. As tormentosas pontadas que lhe arrepanhavam os músculos do peito transformaram-se numa dor surda e constante. O coração batia fortemente. E poderia descansar um pouco, cedendo o comando à fêmea. Mas o facto de ela se manter atrás dele, e beneficiar da força com que ele atacava o ar, o facto de o voo dela depender do seu, comovia-o como um sentimento quente e sublime, obrigando-o a aguentar. Inabalável, manteve o comando.
            O sol caiu para Oeste. E ele estava de tal modo enfraquecido que nem a mais tenaz força de vontade lhe permitia já bater as asas, tão depressa como até aqui. Mas manteve-se à frente. As batidas abrandaram, a velocidade diminuiu, e a fêmea notou-o. E foi então, depois de vinte e quatro horas de silêncio, que ela começou a enviar-lhe suaves gorjeios de ternura. Isso deu-lhe mais força do que o alimento ou o descanso. E ela repetiu o gesto muitas vezes. O sol estava ainda acima do horizonte, o mar doirado resplandecia como pedra preciosa, e as asas dele transportavam-nos, incansáveis.
            Estava o sol a pôr-se quando algo azul-escuro, fino e vaporoso, apareceu no horizonte. Durante alguns minutos pareceu-lhes uma nuvem. Depois ganhou consistência, tornou-se uma faixa de costa, e finalmente surgiram lá atrás os contornos serreados das montanhas da Guatemala e das Honduras. Os cumes vulcânicos longínquos sobressaíam claramente. A mancha azul, junto ao mar, tornou-se verde, e onde ela terminava apareceu a faixa branca da rebentação. Quando os maçaricões atingiram a praia orlada de palmeiras, dispunham ainda de meia hora de claridade e começaram logo a comer. Ao chegar a escuridão, já a tortura da fome e do esgotamento diminuía.
            Toda a manhã seguinte trataram de se alimentar. Mas não havia muita comida, pois a praia era estreita e fora varrida pela rebentação. Ao meio dia prosseguiram o voo, apesar do enorme calor. Agora dirigiam-se terra adentro, pois era Verão na América Central, e as altas pradarias fervilhavam de gafanhotos. Voavam sobre a zona costeira, que subia lentamente até às montanhas. O solo vulcânico, escuro e fértil, produzia frutos exuberantes, como cocos, bananas e cana sacarina. Uma hora depois estavam a 1500 metros acima do nível do mar, e chegaram a uma zona mais temperada, com ar frio e seco. Continuaram a subir, avançaram para as montanhas e alcançaram um estreito vale que conduzia a um planalto elevado.
(Cont.)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Cronistas 8

«Na leitura de Rui de Pina, D. Dinis "fez quase de novo" todas as vilas e castelos de Riba de Odiana: Serpa, Moura, Olivença, Campo Maior, Ouguela, Monforte, Arronches, Portalegre, Marvão, Alegrete, Castelo de Vide, Borba, Vila Viçosa, Arraiolos, Evoramonte, Veiros, Alandroal, Monsaraz, Noudar, Juromenha, Redondo, Assumar, e a torre e o alcácer de Beja.
Na Beira e Riba-Côa fez de novo os castelos de Avô, Sabugal, Alfaiates, Castelo Rodrigo, Vila Maior, Castelo Bom, Almeida, Castelo Melhor, Castelo Mendo, São Félix dos Galegos, Pinhel e o seu castelo.
Em Entre-Douro e Minho e Trás-os-Montes cercou Guimarães, Braga, Miranda do Douro, Monção, Castro Laboreiro, Vinhais, Vila Flor, Alfândega, Mirandela, Freixo de Espada à Cinta, Vila Nova de Cerveira. Ergueu do primeiro fundamento Vila Real. (...)
Podemos afirmar que Rui de Pina pecou por defeito (...). No seu tempo, até os lavradores dos clérigos e os próprios clérigos trabalharam e pagaram para esta obra imensa de reorganização, povoamento e defesa do território. (...)
Donde vieram os recursos para estas reconstruções civis e militares? A mobilização intensa e tributária da mão-de-obra ajudou, mas não explica tudo. A estas despesas acresceram os enormes gastos em viagens de representação diplomática e em incursões militares. Apesar disso emprestou avultadas quantias em dinheiro ao cunhado aragonês e ao genro castelhano e financiou com um empréstimo a companhia que iria explorar na costa de Sines a captura de atuns e de golfinhos. Adiantou o pagamento duma dívida de Lisboa aos mercadores de Pistoia.
Afonso III não deixou o tesouro vazio, mas seu filho soube ampliar as receitas. (...) Os tecidos do Norte da Europa não entravam apenas pelos grandes portos. Em 1287 D. Dinis concedeu à rainha Isabel a isenção de direitos das cousas que entrarem por Selir, (Salir?) menos os panos de cor, as armas miúdas, o ouro, a prata, a pimenta, o açafrão, o ferro tirado, o aço, o chumbo, o estanho e o cobre, que pertencerão ao rei de direito. (...)
Defendeu e favoreceu muito os lavradores, a que chamou nervos da terra e do reino (...). E nas coisas de sua fazenda e casa foi sobre todos o mais provido e solícito, (...); por isso se fez rei de grandes tesouros, porque as gentes do reino foram também em seu tempo mui ricas; e fez muitas leis por bem e regimento da terra. Muitos senhores de nações diversas vinham à sua Corte para o ver. (...)
Acumulou tesouros intensificando a colonização dos reguengos, recuperando os foros do rei, esbulhados pela nobreza e pelo clero.
D. Dinis ficou duradouramente no imaginário popular. Nas Cortes de Évora de 1481 os povos declaravam que, sem a sua acção, a Igreja seria dona de todo o Portugal. (...)»
António Borges Coelho, História de Portugal, Vol. II
[Mas nesse tempo a bebedeira épica era já crónica. Tomara conta das elites aventureiras e cúpidas, e as elites guardariam o país para seu serviço durante muito tempo. Ainda hoje, é só olhar e ver!].

A propósito de génios

J. S. Bach - Badinerie.