segunda-feira, 27 de maio de 2019

O último maçarico-esquimó 3

Cont.
O maçarico abriu as asas e deixou-se cair em glissagens laterais. Pedaços de gelo rosados, a flutuar no rio acastanhado, aproximavam-se vertiginosamente. Então interrompeu a picada e desceu em voo planado até ao chão. Pousou na margem lamacenta dum charco de esmalte, um pouco afastado do rio.
            Os maçaricos chegam aqui em Junho, desde há milénios, para defender a reserva e os seus locais de nidificação. Na tundra desolada aguardam febrilmente as fêmeas, esperando que elas procurem aqui um companheiro para este ano. E, durante o tempo de espera, mal conseguem aliviar o instinto de acasalamento nas lutas com os vizinhos, pela defesa da reserva que escolheram.
            Na exaltação do regresso a casa, o maçarico mal se lembra de que ficou assim, misteriosamente sozinho, durante três longos verões. Insaciado, o fogo do acasalamento acabou por se extinguir por si próprio, depois de ele ter ficado longas semanas solitário. Inexplicavelmente nenhuma fêmea veio ao seu encontro. Porém, dominado pelo instinto, o cérebro do maçarico não sabia, nem perguntou porquê.
            Voara dez horas sem descanso, e agora o corpo exigia-lhe alimento com urgência. A pulsação rápida e os processos metabólicos, que durante longas horas tinham mantido os poderosos músculos das asas em movimento, pediam muita energia. Começou a remexer a lama com o bico. Era um bico singular, adequado a este modo de procurar alimento. Tinha mais de seis centímetros de comprimento e era encurvado para baixo, à maneira de uma foice. O maçarico abria-o levemente e arrastava na lama a ponta delicada, em pequenos movimentos circulares, para tactear as larvas moles de insectos e crustáceos. Era um processo muito rápido, e o bico entrava e saía da lama tão depressa como a agulha de uma máquina de costura.
            Nas zonas baixas havia ainda acumulações de neve, mas o sol brilhava quente e o Árctico palpitava já de vida. Havia alimento abundante, e o maçarico comeu mais de uma hora sem interrupção, até o papo lhe ficar grotescamente inchado, na raiz do pescoço. Depois caiu em sonolência. Firmado sobre uma perna, manteve o pescoço virado para trás e o bico enterrado nas penas do dorso. Era mais descanso do que sono. Os ouvidos e o único olho descoberto permaneciam incansavelmente atentos às raposas e às corujas polares, que se aproximavam como fantasmas. No seu corpo, os processos metabólicos desenvolviam-se rapidamente, e meia hora de descanso equilibrou a perda de energia do voo de dez horas. O maçarico estava completamente restabelecido.
(A continuar)