Cont.
O maçarico abriu as asas e deixou-se cair em glissagens
laterais. Pedaços de gelo rosados, a flutuar no rio acastanhado, aproximavam-se
vertiginosamente. Então interrompeu a picada e desceu em voo planado até ao
chão. Pousou na margem lamacenta dum charco de esmalte, um pouco afastado do
rio.
Os
maçaricos chegam aqui em Junho, desde há milénios, para defender a reserva e os
seus locais de nidificação. Na tundra desolada aguardam febrilmente as fêmeas,
esperando que elas procurem aqui um companheiro para este ano. E, durante o
tempo de espera, mal conseguem aliviar o instinto de acasalamento nas lutas com
os vizinhos, pela defesa da reserva que escolheram.
Na
exaltação do regresso a casa, o maçarico mal se lembra de que ficou assim,
misteriosamente sozinho, durante três longos verões. Insaciado, o fogo do
acasalamento acabou por se extinguir por si próprio, depois de ele ter ficado
longas semanas solitário. Inexplicavelmente nenhuma fêmea veio ao seu encontro.
Porém, dominado pelo instinto, o cérebro do maçarico não sabia, nem perguntou
porquê.
Voara
dez horas sem descanso, e agora o corpo exigia-lhe alimento com urgência. A
pulsação rápida e os processos metabólicos, que durante longas horas tinham
mantido os poderosos músculos das asas em movimento, pediam muita energia.
Começou a remexer a lama com o bico. Era um bico singular, adequado a este modo
de procurar alimento. Tinha mais de seis centímetros de comprimento e era
encurvado para baixo, à maneira de uma foice. O maçarico abria-o levemente e
arrastava na lama a ponta delicada, em pequenos movimentos circulares, para
tactear as larvas moles de insectos e crustáceos. Era um processo muito rápido,
e o bico entrava e saía da lama tão depressa como a agulha de uma máquina de
costura.
Nas
zonas baixas havia ainda acumulações de neve, mas o sol brilhava quente e o
Árctico palpitava já de vida. Havia alimento abundante, e o maçarico comeu mais
de uma hora sem interrupção, até o papo lhe ficar grotescamente inchado, na
raiz do pescoço. Depois caiu em sonolência. Firmado sobre uma perna, manteve o
pescoço virado para trás e o bico enterrado nas penas do dorso. Era mais
descanso do que sono. Os ouvidos e o único olho descoberto permaneciam
incansavelmente atentos às raposas e às corujas polares, que se aproximavam
como fantasmas. No seu corpo, os processos metabólicos desenvolviam-se
rapidamente, e meia hora de descanso equilibrou a perda de energia do voo de
dez horas. O maçarico estava completamente restabelecido.
(A continuar)