As circunstâncias tornaram-se propícias: na
véspera instalaram a Internet e eu descontraí enfim; a manhã trouxe um sol
primaveril, a negar as previsões dos manda-chuvas; a Caixa tinha pago ainda uma vez a reforma duma vida longa. E assim me decidi a abandonar o fojo, a mandar à bardamerda a austeridade e a dar uns sinais de vida. Fui comprar um chá de bergamota com florinhas de aciano e
almoçar num restaurante à beira dum riozinho das minhas predilecções. Isto na cidade que me está mais à mão, uma que tem, nas alturas da sé, um traseiro desnudo e insolente exibido a Castela.
Nos passeios havia montões de neve, suja e dura,
congelada, restos do nevão da véspera. E uns automóveis arriscavam-se nas ruas às
apalpadelas. A aragem cortava como facas apesar do céu azul, e eu lancei mão dum bastão ferrado
de montanheiro que anda na mala do carro. Há muitos anos que o trouxe de Krimml, uma cascata alpina que fui ver em tempos mais promissores. Salvou-me de
me estatelar no gelo, enquanto andava à procura duma latinha do chá.
No restaurante estavam à minha espera uns sabores muito antigos, à beira do riozinho. E às tantas faiscou à flor da água um guarda-rios, um pássaro fugidio que é azul com pinceladas de fogo. Parou à minha frente no braço dum salgueiro, mirou as trutas que flanavam na corrente e foi à vida, como as setas disparadas.
Eu pedi à camareira
uma embalagem e trouxe para casa o almoço que sobrou, porque era demasiado. E assim voltei
às falácias da puta da austeridade, porque afinal a primavera era a fingir.