[Quando este texto deu flor pus-me a olhá-lo de longe. Chamei-lhe conto perfeito e hoje insisto.]
Eram
os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que neles cabia o mundo, tão
escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto,
debaixo da gaforina asa de corvo. O lábio húmido, a carnação macia, a flor da
face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a
abrir. O resto era o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a
prometer abismos.
Ninguém
sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga.
Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primitivas da fertilidade. O
mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.
Dava
escola para os lados de Aveiro, e vinha a casa sempre que podia. Chegava na
carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida, a reclamava. A bem
dizer a aldeia inteira o exigia.
Na
vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo,
que fazia deste mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho,
mais por instinto primário de defesa, do que por atributos que não tinha. A
ninfa confundiu nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E
quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as momices atrevidas, nem os
avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no
assédio do bargante.
No
dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim
da tarde. Uma outra que vinha do comboio havia de pô-la em casa. Mas o Tunante
estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a
loja nova, logo à entrada das muralhas.
A
ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da
noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à
moda das princesas. E ela logo se rendeu, enleada em semelhante gentileza. Tinha
mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho
bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.
A
princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de rapapés, quis levá-la com bons
modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo
de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma visão.
A
ninfa aos poucos cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se,
o sangue a romper as veias, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um
grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a
assustava.
Quando
quis despir-lhe a blusa, a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um
grito, cruzou os braços no peito sublevado, refugiou-se no medo. E o Tunante
deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao
canto, as mantas que lá tinha. Depois apagou a luz, ergueu numa braçada a ninfa
amedrontada e foi estendê-la no chão.
Lá
fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra
vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas
brutas lhe apartavam as colunas, e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas
na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se. Conteve a respiração,
não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes
entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão
desamparada, e um lago que arrefecia.
Por
fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de
trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava
àquela hora.
O
Tunante recolheu as mantas, fechou a porta da loja. Uma ninfa desfolhada dava
casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos
códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os
códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e ficava o problema
resolvido.
Quando
o Outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta
e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas,
que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a
sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu
para outra coisa das mãos do criador.
O
pai da ninfa já estava à espera dele, sentado no balcão. E quando o viu saltar
da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido,
não podia acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e pôs-se a ladear, queria ver
se era verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem
chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a
correr.
As
mulheres espreitavam à janela, gente havia que parava pelas hortas, a olhar,
silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem cavalgar estrada abaixo,
atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e
disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida
do negrilho, e à curva da fraga grande.
Agora
chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa
frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o
pescoço o bafo de um deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E
o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.
Mas
vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O
primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que nos serve o segundo, um
vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.