O rapaz estava a nascer em Los Angeles, naquela noite medonha em que eu atravessei o Atlântico há 50 anos, dentro da barriga dum velho Skymaster que sobrevivera à ponte aérea de Berlim. A ideia era ir à ilha Terceira, ao bar dos americanos que era o que mais estava à mão, provar uma coca-cola, despir-me de tiques primitivos e atavismos milenares, e tomar o primeiro banho de pós-modernidade. No fundo, civilizar-me.
O Ellis saiu do aconchego das coxas da mãe no exacto momento em que um cowboy do Texas estendeu o braço para dentro do balcão, sacou de lá uma garrafa de rum e a despejou em volta. Depois faiscou o Zippo e incendiou o bar. E tudo acabou em bem, porque o barista indígena descarregou dois extintores nas labaredas e transformou aquilo tudo numa performance do Santa Claus.
Vinte anos mais tarde o Ellis escreveu um livro (a que chamou romance), e não é mais que uma sequência de fotos da sociedade coeva da América. Um jovem narrador vem passar um mês de férias à costa Leste, e no fim talvez volte para a universidade, mas ainda não é certo. Os figurantes, todos muito semelhantes, não passarão duma dúzia. Por isso não variam muito, na sucessão de instantâneos que serão uma centena mas podiam ser dez mil.
O psiquiatra que me trata durante as quatro semanas de férias é novo, conduz um 450 SL e tem uma casa em Malibu. Costumo sentar-me no seu consultório, em Westwood, com as persianas fechadas e com os óculos de sol, fumando cigarros, alguns de cravo-da-Índia, só para irritá-lo, e algumas vezes choro. À vezes grito-lhe e ele grita comigo. Conto-lhe que tenho fantasias sexuais bizarras e o interesse dele aumenta a olhos vistos. Começo a rir-me sem razão e depois sinto-me subitamente enjoado. Às vezes minto-lhe. Ele conta-me coisas acerca da amante e das reparações que estão a ser feitas na outra casa em Tanhoe, eu fecho os olhos e acendo outro cigarro, cerrando os dentes. Às vezes, simplesmente, levanto-me e saio.
O romancinho veio à luz em Nova Iorque, em 1985, e a coisa foi de tal ordem que o Ellis passou a ocupar uma posição fulcral na novíssima geração da literatura norte-americana. A Teorema editou-o em Lisboa em 1987, numa tradução irrepreensível.
Realmente está lá tudo, ainda hoje, a boiar na espuma da rebentação. Dez por cento dos americanos, em contagem generosa, não fazem outra coisa que não seja pensar, investigar, elaborar e produzir ideias, mesmo que não lembrem ao diabo. Os restantes apertam parafusos no turno de trabalho, mas não sabem fazer contas, nem entenderão a bula dum medicamento, nem sabem onde fica o resto do mundo, nem precisam de o saber. As figuras que povoam o portfolio do Ellis snifam linhas de coca, têm um dealer por perto, consomem quanto aparece, mormente fatos de banho e óculos de sol coloridos, e restaurantes e bares que estão na moda, e Ferraris e Porsches e Mercedes de alta gama. E esvaziam garrafas no balcão, enquanto o mundo inteiro vai descarregando extintores e amarguras em cima das labaredas.
(...) Quando chegamos ao apartamento de Rip, em Wilshire, ele leva-nos logo ao quarto de dormir onde está uma miúda nua, nova e realmente bonita, deitada no colchão. As pernas estão abertas e amarradas aos pés da cama e os braços estão atados por cima da cabeça. A vagina parece seca e tem uma espécie de urticária, e vê-se que lhe raparam os pêlos. Geme constantemente, murmurando algumas palavras (...). Spin espeta-lhe a seringa no braço. Eu limito-me a olhar. Trent exclama «Huau!». Rip diz qualquer coisa que não se percebe.
- Ela tem doze anos!
- E é apertada, meu - ri Spin. (...)
Ross está a jogar Centipede na sala, mas o som do jogo de vídeo chega até ao quarto onde estamos. Spin mete uma cassete na aparelhagem e depois despe a camisa e os jeans. Está de pau feito e mete-o na boca da miúda. Vira-se para nós e diz: - Podem ficar a ver, se quiserem. (...)
- Ei, não olhes para mim como se eu fosse uma espécie de escumalha ou coisa parecida, porque não sou.
- É que... - a voz começa a falhar-me.
- É o quê? - quer saber Rip.
- É que... eu acho que não está certo.
- O que é que está certo? Se queres uma coisa, tens direito a tê-la; se te apetece fazer qualquer coisa, tens direito a fazê-la.
Encosto-me à parede. Oiço Spin a gemer no quarto de dormir, e em seguida o som de uma palmada, talvez na cara. (...)
Escrito na casa de banho do Pages, por baixo de "Julian faz muito bem broche e morreu", está: «Quero é que o papá e a mamã se fodam. Vão fazer minete! Vão fazer broche! Quero é que vocês morram, porque foi isso que vocês me fizeram - deixaram-me morrer. Não há saída para vocês. A vossa filha é iraniana e o vosso filho paneleiro. Vocês podem apodrecer no inferno, atolados de merda. Vocês podem morrer queimados, seus atrasados de merda. Morram, seus cabrões! Morram!
Já nessa altura o Ellis viu muito bem esse relativismo pós-moderno. E agora, que passaram 30 anos, começa isto tudo a ficar cheio de imitações (mentais, ideológicas, estéticas e literárias), que nasceram num sertão e o tomam por modelo. Mas são tudo produtos contrafeitos e serôdios.