domingo, 10 de maio de 2009

Ecos da Sonora XVII

Angola era uma terra fascinante. Ou nem tanto.
Foi assim que a viu Miguel Torga, por 1970. Bem sei que era uma visão de poeta, mas enfim...

in A CRIAÇÃO DO MUNDO:
(...) Quando a altas horas da noite desci em Luanda, senti repentinamente não sei que abalo íntimo. Voltava outra vez a ser criança e a desembarcar no Rio de Janeiro. O mesmo calor húmido e pegajoso, a mesma convivência de sangues, a mesma pronúncia amestiçada... Teríamos realizado ali também um segundo Brasil, enobrecendo o planisfério com mais uma gigantesca e fraterna comunidade multirracial?
(...) Só no dia seguinte, já com um sol escaldante a morder a pele, é que a verdade se mostrou na sua trágica nudez. Rodeada de bairros miseráveis, onde a vida destribalizada dos moradores parecia ter perdido toda a coesão social, a cidade lembrava uma Sodoma de irresponsabilidade cercada de maldição. Num cenário grandioso, e dramaticamente separadas por um fosso de incompreensão, duas etnias caminhavam lado a lado, uma vestida e a outra despida, uma a enriquecer e a outra a trabalhar, uma dignificada e a outra degradada. Lá estavam, erguidos nos plintos da glória, os heróis, os santos e os poetas. Lá estavam, inexpugnáveis, os baluartes do poder: a fortaleza, os quartéis, as esquadras da polícia. Lá estavam, sacrossantos, os templos da fé. Mas faltava o melhor: o espírito de serviço, a entrega natural a uma causa transcendente. Os valores que ali tinham curso eram todos da ordem do transitório. Até no desconchavo das construções se via. Incaracterísticos, iguais a tantos outros que enxameavam o mundo, anárquicos e insólitos ao lado dos tugúrios de lata, os arranha-céus pareciam delírios de papelão. Evocava Ouro Preto ou Salvador, tão nossos e tão tropicais, tão à medida dos senhores e dos escravos, e desanimava. Que demónio de orgulho e cobiça nos tentara e ensandecera? Como é que tínhamos desaprendido tanto?
(...) Assim esclarecido, deixei aquela alucinação em cimento armado num misto de desilusão e melancolia, e meti-me pela terra dentro à procura de respostas mais animadoras às minhas inquietações. (...)
Outras cidades cresciam de longe em longe, tentaculares e floridas. Mas sempre implantadas num descampado imenso e rodeadas da mesma miséria suja e promíscua. O esforço épico de alguns pioneiros não fora secundado pela maioria. Ao cabo de quinhentos anos de uma presença formal, com figura jurídica mas sem textura humana, fora do perímetro de cada povoado a lei do sertão continuava inalterada. Os próprios massacres de que tínhamos sido vítimas o comprovavam incontroversamente. Só homens ainda na primitiva decência, certamente movidos por forças anímicas poderosas, mas alheios à graça da bênção cristã, se comportavam com tal ferocidade. (...)
E o pior é que não se vislumbrava em nenhum patrício, mesmo nos mais esclarecidos, o mínimo sentimento de culpa, sombra de remorsos por uma falência que era ao mesmo tempo uma traição. Todos de boa consciência, optimistas, reviam-se euforicamente no culto dos seus casos particulares, dos seus interesses, dos seus prazeres. Confundiam com a sua a imagem do bem geral. Seguros da legitimidade do domínio branco, até os apuros da véspera esqueciam e já nem a presença militar achavam justificada.
- Nós sabemo-nos defender. Temos armas...
(...)