Dizem que Portugal entrou na CEE por força da agudíssima visão dum estadista, mas não é verdade. Portugal entrou na Europa pela lógica mais elementar, e pela mais natural ordem das coisas. Entrou pelas mesmas razões que obrigam o náufrago a agarrar-se a uma jangada. Passe a imagem trágico-marítima, para não ter que passar a do mendigo de mão estendida, ou outra mais rastejante.
Num Portugal esvaído por séculos de balelas gloriosas, ninguém perguntou aos portugueses se queriam entrar na CEE, nem faria sentido perguntar-lho. É certo que na Europa nem tudo são boas companhias. Mas há transes neste mundo em que melhor se vai mal acompanhado do que só, é do mais básico senso comum. Foi assim que se juntou a fome própria, com a alheia vontade de comer.
A modernização entrou depressa no discurso político, um rio de dinheiro entrou em Portugal, o pugresso instalou-se em marcha acelerada. Saldou-se a pouca indústria pela veniaga dos fundos, saldou-se a fraca agricultura para abreviar os prazos, saldaram-se traineiras por dinheiro vivo. Fizeram-se auto-estradas e estádios de futebol, e resumiu-se o futuro a um Audi de seis cilindros, com trezentos cavalos de potência que alguém há-de pagar. Portugal tornou-se um país rico, e foi deixando correr o marfim, no pelotão da frente.
Mas há sempre patriotas sonâmbulos, e outros que simulam sê-lo. Temem-se da Constituição da Europa, temem-se do Directório, temem-se da soberba dos países ricos. Já esqueceram que quem não tem dinheiro também não terá vícios. E queixam-se do tratado de Lisboa, que nem foi referendado pelo povo, nem lhes representa a voz.
Os patriotas sonâmbulos disfarçam mal um sofisma. Apenas 2% dos portugueses, dos que são pagos para lerem o tratado, se deram ao trabalho de o ler. E só metade dos que conhecem a vulgata aligeirada entenderam o que leram. Nenhum outro português tem a mais pálida ideia do que o tratado contém, nem algum dia a terá. Referendá-lo é, por isso, um fingimento, uma irrealidade, um formalismo vazio.
Porque só há nisto tudo duas realidades. A primeira é o pequeno-almoço dos portugueses, que eles tomam porque são membros da UE. No dia em que deixarem de o ser, logo metade deixarão de o tomar, como bem sabe quem não perdeu a memória. E a segunda é competir aos portugueses fazer, dentro da UE, o trabalhinho de casa. Foi o que nunca fizeram.